A magia independente da Livraria Leonardo Da Vinci

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A magia independente da Livraria Leonardo Da Vinci
Livraria Da Vinci
Da Vinci
Livraria Da Vinci

Enquanto perambulam entre as obras de Voltaire e de Machado de Assis, os leitores se esquecem que estão em pleno coração financeiro da Cidade Maravilhosa

Quinta-feira, intervalo de almoço. Entra uma, duas, três e, de repente, vinte pessoas estão circulando entre as mesas e as estantes da Livraria Leonardo Da Vinci, no Centro do Rio de Janeiro. A trilha sonora, perfeita para o breve momento de descanso ou de procura por aquele título raro ou surpreendente, colabora para que todos ali se sintam ainda mais à vontade! Enquanto perambulam entre as obras de Voltaire e de Machado de Assis, os leitores se esquecem que estão em pleno coração financeiro da Cidade Maravilhosa. O grande diferencial da Leonardo Da Vinci até poderia ser os já descritos, no entanto, a experiência de flanar por seus caminhos é potencializada por uma antiga e quase esquecida figura nos ditos tempos modernos: o livreiro!

Daniel Louzada, responsável pela revitalização da mítica livraria, salvando-a de um improvável e triste fechamento em 2016, cumpre com louvor esse importante papel. Volta e meia, anônimo, ele se mistura entre os visitantes. Basta uma rápida interação para se perceber que, além da simpatia, Louzada é, de fato, um profundo apreciador de livros. “Se você não confia no seu livreiro, em quem vai confiar?”, é o bordão que já foi transformado em slogan.

Dias antes, ele recebeu o Homo Literatus para uma conversa, que sem a usual pressa imposta pelos relógios, durou quase duas horas.  Isso diz muito sobre a Da Vinci sob os cuidados de Louzada. “Todos os que vêm aqui buscam experiências reais, livros reais, contato com pessoas reais e é isso que tentamos oferecer a quem nos visita”, afirma o livreiro. Em meio à padronização das relações digitais, a Da Vinci caminha no sentido oposto: uma ilha de calor humano em meio à frieza de cliques e telas (in)sensíveis ao toque!

Aliás, a história da Leonardo Da Vinci é composta por capítulos de independência e de resistência. Fundada em 1952 pelos livreiros Andrei Duchiade e Vanna Piraccini, em plena Era Vargas, a livraria, que inicialmente abriu as portas no Edifício Delamare, até se mudar para o atual endereço, o subsolo do edifício Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco, número 185, abasteceu os intelectuais brasileiros de lá para cá com obras importadas e raríssimas que nenhum outro estabelecimento oferecia. A Da Vinci resistiu à Ditadura Militar e até mesmo a um incêndio “misterioso” em 1973.

“Quando decidi investir na Leonardo Da Vinci, comprei o nome e a história da livraria, mas era preciso melhorar a experiência do cliente. Oferecer espaços para que as pessoas permaneçam mais tempo aqui dentro, como, por exemplo, mesas para leitura, um café”, orgulha-se Louzada, salientando que a versão labiríntica da antiga Da Vinci não fazia mais sentido. Por outro lado, a marca registrada da livraria, a profundidade, a variedade e a qualidade de seu acervo, segue mais forte do que nunca.  “O espírito é o mesmo, apesar do mundo ter mudado, o mercado ter mudado, a cidade ter mudado. A Da Vinci também precisava avançar”, completa. Para os frequentadores, o novo ambiente ficou mais aprazível e a versão anterior se tornou uma boa lembrança. Assim é a vida, não é mesmo?

A estudante de Letras Carmô Senna, 30 anos, aprovou a revitalização da loja que sempre foi uma espécie de segunda casa para ela. Criada por pais apaixonados por livros, uma Carmô ainda adolescente descobriu a rampa em espiral que transporta leitores do mundo real para o subsolo mágico no qual a Da Vinci se encontra. Aos 15 anos, a estudante passou a ser uma das figuras carimbadas da livraria. “Sempre que estou por aqui, chamo meus amigos para tomar um café na Da Vinci”, alegra-se. O brilho no olhar de Carmô se tornou levemente opaco quando perguntada sobre sua reação ao saber que a Leonardo Da Vinci ameaçou fechar as portas em 2016. “Fiquei muito triste, quase entrei em desespero. Imagina, perder um lugar que significa tanto para mim?” A resposta da estudante não é exagero, a livraria realmente é importante para ela, não apenas porque ali se vende o objeto mais amado, o livro em si, mas a sensação que aquela intimidade de circular por entre capas e páginas a faz se aproximar de uma saudade: a do pai, cuja lembrança mais doce que cultiva é a dele lendo Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez, enquanto a esperava na saída da escola.

O acesso àquela rampa em caracol desafia a exatidão nem sempre mágica do mundo real. A economista Fernanda Feil, 40 anos, que o diga! Acostumada à precisão dos números e dos cálculos matemáticos, ali, nas dependências da Leonardo Da Vinci, essa “gaúcha-paulistana”, que vive há três anos e meio na capital Fluminense, encontrou o lugar ideal para se desligar da rotina. Papo vai, papo vem, Fernanda revela que adquiriu o hábito de passar horas numa livraria no período em que morou em São Paulo e que, quando veio para o Rio, teve a grata surpresa de conhecer a antiga Da Vinci. Foi durante o período de transição, fase em que a livraria funcionou provisoriamente numa sala em frente ao endereço oficial, que Fernanda teve, em primeira mão, a oportunidade de conhecer o esqueleto daquela que viria ser a atual Da Vinci. “Curiosa que sou, fui na loja provisória e conheci o Daniel [Louzada], que me convidou para ver como estava ficando o novo desenho da livraria. Desde então, venho aqui para comprar livros, descansar, estudar e também almoçar”, festeja. Fernanda brinca que perto do caixa da loja existe um escaninho com seu nome em função dos tantos títulos encomendados. Eis que mais uma vez a Da Vinci dá sinais de suas magias secretas: ou você ousaria dizer em que outro lugar do planeta uma economista admitiria, sem pudor algum, que “perdeu a conta” de quantas obras já comprou? Leitora contumaz, Fernanda é daquelas que raramente sai sem um livro debaixo do braço. “O ‘culpado’ disso é o Daniel [Louzada], que fica indicando vários títulos para mim”, diverte-se.

Volta-se, então, à importância da figura do livreiro para estabelecer uma relação de confiança com os leitores. “A grande maioria das pessoas não entra numa livraria sabendo o que vai levar. Aqui, muito menos! Os clientes entram e descobrem muitos títulos e acabam comprando acima da média. Eu também não conhecia a maior parte dos livros que temos aqui. Não existe o algoritmo da subjetividade perfeita. São coisas que acontecem no contato, durante uma conversa com o outro”, observa Louzada. Talvez seja exatamente neste fator que resida o ponto focal da resistência, entre todas as resistências, da Leonardo Da Vinci. Que outra palavra representaria melhor uma livraria independente no Brasil, localizada no subsolo de um edifício na região central do Rio de Janeiro, que sobreviveu à Ditadura Militar, a inúmeras crises políticas e econômicas, não foi engolida por grandes redes do setor e se orgulha de ser analógica em tempos digitais?

É por essas e por outras que a Livraria Leonardo Da Vinci se faz tão marcante e icônica, a ponto de encher de orgulho quem por ela transita. “Diria que a Da Vinci é a minha livraria preferida”, afirma Louzada, com o orgulho digno de um pai coruja falando dos filhos. Não há exagero em sua fala. Para entender sobre o que ele está falando, só indo até a Livraria e deixando a magia da Da Vinci acontecer! Afinal, se você não confiar em seu livreiro, em quem vai confiar?

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