Eu era operador de injetora plástica numa notória (e já falida) fábrica de eletrodomésticos. Costumava ler livros e revistas musicais entre os ciclos da minha máquina. 60 segundos até a peça de plástico ser moldada equivalia a uns dois ou três parágrafos lidos. Havia comprado De Vagões a Vagabundos numa banquinha de revistas na rodoviária de Porto Alegre. O subtítulo já era preciso sobre o que eu já esperava: “memórias do submundo”, pra quem não sabe, todos os contos têm forte caráter autobiográfico, inclusive revelam as inclinações políticas de Jack London (ler Como me tornei socialista).
Quando retornei para Caxias do Sul esqueci o livro numa caixa, embaixo da minha bancada de trabalho. Ficou lá, soterrado sob peças deformadas e ferramentas, por semanas. Só fui lembrar dele num dia em que minha máquina estava em manutenção. Só que, quando comecei a leitura, minha máquina já estava pronta pra funcionar. Mesmo assim avancei, me aferrei logo às primeiras páginas. Depois de ler a prestações metade do livro, em horário de trabalho, senti necessidade de ler O herege novamente. Fiz uma segunda leitura no ônibus da empresa. Não satisfeito, porque no ônibus minha atenção se diluía nas conversas dos colegas, fui para uma terceira leitura durante o cursinho noturno, com aquele volume nanico devidamente inserido dentro de outro livro, só que esse, era de física. Foi nocaute.
O conto narra em terceira pessoa o cotidiano de Johnny. Um pré-adolescente que é um dos esteios de uma família numerosa, sem pai, beirando a miséria. Para ajudar no sustento da mãe e dos irmãos mais novos, Johnny enfrenta uma rotina extenuante de trabalho numa insalubre tecelagem de juta, onde cumpre 10 horas por dia e recebe a ninharia de 10 cents a hora. Nascido dentro de uma fábrica, filho de mãe já explorada pelo regime de trabalho absurdo que caracteriza o pós revolução industrial no fim do século 19, Johnny encontra uma saída inusitada para se libertar de sua rotina degenerativa.
Curiosa é a história da concepção do conto. Em 1906, Jack London foi convidado por um editor de uma revista da Costa Oeste para visitar o sul dos EUA, no intuito de escrever uma reportagem sobre o trabalho infantil nas tecelagens de algodão. Por falta de tempo, se viu forçado a recusar o convite. Talvez, por senso de dever, ou mais provavelmente acerto de contas com o passado, London escreveu O herege. Publicado naquele mesmo ano no Woman’s Home Companion, o curto texto se tornou uma arma de ponta na luta pela abolição do trabalho infantil nos Estados Unidos.
Confesso que, quando jovem, eu tinha uma tendência a procurar por histórias pungentes, que me desestruturavam por alguns minutos ou algumas horas. Hoje não tenho mais essa preferência, essa espécie de vício. Ao revisitar O herege, obviamente não senti o mesmo baque e nem esperei sentir. A gente cresce, mas mesmo assim bateu um saudosismo besta quando reencontrei o livro, agora com uma capa redesenhada, que peguei emprestado de um amigo, porque o meu sabe lá onde foi parar.
Trecho do conto ‘O herege’, de Jack London
“Jamais houvera um tempo em que não tivesse vivido em íntimas relações com as máquinas. As máquinas quase tinham sido criadas dentro dele; de qualquer modo, ele tinha sido criado junto delas. Doze anos antes, houvera um pequeno alvoroço na sala dos teares dessa mesma tecelagem. A mãe de Johnny desmaiara. Esticaram-na no chão em meio às máquinas barulhentas. Duas mulheres mais velhas foram chamadas. O supervisor as assistiu. E em poucos minutos havia na sala dos teares uma alma a mais de quantas tinham entrado pelas portas. Era Johnny, nascido com o som e o peso dos teares em seus ouvidos, sorvendo, no seu primeiro respirar, a atmosfera úmida, abafada e impregnada de tantos fiapos de fibras suspensas. Naquele primeiro dia ele tossiu para livrar seus pulmões daquelas fibras, e pelo mesmo motivo começou a tossir desde então.”
Trecho do conto ‘Finados’, de Maikel de Abreu
“Chegou com fome, acendeu três velas sobre a mesa, preparou uma massa com molho branco. Abriu uma garrafa de vinho tinto. Recebeu três chamadas no celular, desligou, não queria ser incomodada durante seu rito de luto. Sentou-se na sacada, onde seus três gatos apanhavam sol no fim da tarde. Embebedou-se, deixou a massa queimar. Sua imaginação combinada ao vinho tornava sólido tudo o que pensava. Pegou seu bloco de notas e começou a escrever três histórias sobre a vida de três mulheres diferentes. Riu e chorou à medida que sua caneta deslizava sobre o papel áspero construindo suas falsas biografias. Não parou de escrever por seis horas. Acabou com a garrafa de vinho, jogou a massa no lixo, comeu mais bolachas, não lavou a louça. Largou o bloco de notas sobre a mesa de centro. Saberia que seu novo romance seria um sucesso. ‘Sou três vidas falsas’ – pensou no título.”
Maikel de Abreu nasceu em Caxias do Sul, em 1981. Escreveu, em parceria com César Mateus, Couro ilegítimo e outros contos (2012, Modelo de nuvem), participou da coleção Formas Breves com o conto Às noites de distância (2014, e-galáxia), e atualmente se dedica a uma novela. É técnico em enfermagem há mais de oito anos, mas já foi operário, músico, assessor de imprensa …em suma, um biscateiro.