Uma das premissas para a felicidade plena cristã é a necessidade da pureza, da ingenuidade. Segundo a tradição caímos do paraíso porque Adão e Eva comeram o fruto da arvore proibida. A árvore do conhecimento. A partir desse momento temos noção do bem e do mal e os crimes começam no mundo. E a educação, a forma como nossos mestres nos transmitem a educação, na maioria dos métodos, pelo menos os tradicionais, acontecem através da repressão. Ainda existem os teóricos da educação e da sociedade que dizem que esses métodos são todos violentos. De certa forma é sobre isso que Luis Fernando Veríssimo fala no surpreendente livro “O Jardim do Diabo”. Publicado em oitenta e sete, o livro nos coloca num caleidoscópio de imagens do passado, do presente e das histórias que o personagem principal, que se auto denomina um escritor de histórias de quinta, cria.
“Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida.” Essa é a primeira frase do livro. Sentimos aí a ironia de Veríssimo que estará presente em toda sua obra. Narrado em primeira pessoa, o livro é uma obra prima do escritor gaúcho que sabe como ninguém usar e abusar do tom irônico em todos os seus textos. Mas apesar da história ser engraçada, divertida, definitivamente não é uma comédia, quem sabe uma tragédia, mas o livro é extremamente grave e profundo. Estevão é um autor desses livros que são vendidos em bancas de jornal, em papel jornal com histórias simples de crime e castigo. Ele publica um livro por mês, sempre com vários pseudônimos diferentes e tendo o herói sempre o nome de Conrad. O personagem vive auto exilado em seu apartamento desde que perdeu o pé em um acidente, tendo a companhia apenas de dona Maria, a mulher que cozinha todo o dia para ele e ouve um programa de rádio no último volume sempre incomodando as histórias de Estevão. E também de Lília, faxineira que vai duas vezes por semana no apartamento, porém não faz faxina, apenas sexo com Estevão. Recebe uma vez por mês a visita do irmão mais velho. A história começa com a entrada de um personagem novo na vida do escritor, o inspetor Macieira, ou como diria Estevão, o macio Macieira.
Macieira visita Estevão por que investiga um crime acontecido no bairro onde ele trabalha, o Jardim Paraíso. O crime, diz Macieira, foi uma reprodução do que aconteceu no último livro de Estevão, Ritual Macabro, onde o vilão Grego, o primeiro que Conrad não conseguiu matar nas últimas páginas. No crime Grego escreve na parede, com o sangue da vítima, instruções para que Conrad o encontre. O grande problema é que o crime aconteceu dias antes do livro ser lançado. De uma forma assustadora, o personagem mais cruel de seus livros, aparece na vida de Estevão. O último livro publicado era diferente de todos ou outros. Não era uma simples história de crime e castigo. Uma história onde o bem e o mal tinham linhas claras e combatiam, sempre com o bem ganhando no final. A última história fez Conrad pensar, sentir-se pesado, profundo.
Veríssimo brinca o tempo todo com nossa atenção. Escrevendo sobre o novo livro onde Conrad busca o Grego para o acerto de contas final, da visita de Macieira, do volume infernal do rádio de dona Maria, e nos dando uma ideia vaga, que se fortalece ao longo do livro, da história de sua família e o que aconteceu para se encontrar em exílio autoimposto. Muitas vezes, na mesma frase temos as histórias emaranhadas, sentindo exatamente como funciona a mente do escritor. Conrad é um implacável justiceiro, aos moldes de Chuck Norris, que vai aplicando a justiça à custa de muito sangue, violência e sexo. “Ela está gozando mesmo. O velho lobo do mar tinha fisgado mais uma em seu anzol infalível. Sim, Sim. Que importam a finitude humana e a perversidade do mundo se os justos comandam seus destinos¿ A questão não é se Deus existe ou não, a questão é se você vai brochar só por causa disso.” Definitivamente Conrad era um homem simples, confiante na justiça e sabendo onde está o bem e o mal.
Estevão era o último dos sete filhos de uma mulher discreta e de um homem defensor da moral e da igreja. Moravam num sobrado numa rua de sobrados que tinha uma enorme biblioteca e um grande jardim, redutos dele quando criança e adolescente. O pai era o bastião da moral, os irmãos, todos homens, de várias matizes. O mais velho era um revolucionário, lutava contra o golpe que o pai deles defendia. O jovem Estevão, desinteressado em política, fica dividido vendo seus dois heróis brigando uma luta armada em posições opostas. Mas num verão, em que ficavam apenas o menino e o pai na casa, ele encontra uma mulher saindo do quarto dos pais de madrugada. Depois desse dia ele começava a perder a ingenuidade, todos os irmãos sabiam da vida dupla do pai. Estevão era um inocente e não queria encontrar a verdade, queria continuar no paraíso.
O golpe militar está presente na vida de Luis Fernando Veríssimo. Mesmo assim o livro esta longe de ter traços biográficos. Estevão era um iludido e esteve longe das complicações do golpe, tanto que ele aparece apenas no drama da família. Pouco sabemos a data exata em que acontece, e qual o grau da opressão em que se encontra a ditadura. O golpe e sua manifestação doméstica são mais um subtexto nessa história repleta de subtextos. Por algum motivo Estevão coloca uma profundidade na sua nova história que ainda não tinha aparecido em nenhum de seus livros. Colocava agora um subtexto no seu livro e Conrad não conseguia mais decidir o destino do vilão com a sua morte, não conseguia matar o vilão. Em certo momento Estevão diz que está tentando fazer uma história de quarta categoria, e que a editora não irá gostar dessa tentativa de escalada de classe.
O inspetor Macieira continua visitando Estevão em seu apartamento, divulgando que novos crimes estão acontecendo nos moldes de Grego, mesmo sem o livro estar terminado. Ele insinua que a imaginação do escritor tomou forma e agora está nas ruas cometendo crimes. Percebemos claramente que o desenvolvimento da historia gira em torno do amadurecimento, do abandono da ingenuidade. Estevão percebe que Macieira quer algo mais dele e, de repente, como numa epifania, descobre que Macieira é o irmão bastardo, filho da mulher que ele encontrou de madrugada saindo do quarto de seus pais. A história de que Grego estava matando na vida real era inventada com o intuito de fazer Estevão parar de fazer reminiscências, pois no dia em que ele perdeu o pé, seu pai foi assassinado. Isso tudo aconteceu no esconderijo onde estava seu irmão mais velho. Ele nunca lembrou nada da hora do acidente, mas a possibilidade de lembrar assustou a todos. Veríssimo faz várias insinuações, mas não sabemos quem matou o pai, apenas se pode desconfiar que foi um dos filhos.
Conrad, que tinha como pratica espiritual seguir os conselhos do sábio Vishmaru, uma espécie de guia que o ensinava a ter calma espiritual, aplicar na bolsa e aumentar seu desempenho com as várias mulheres que tinha ao longo de suas aventuras. Como o Grego continuava seus crimes, sempre deixando dicas para que Conrad o encontrasse, ele fica confuso, quer que aquilo acabe, nem que seja com a sua morte. Mas Grego não queria mata-lo logo. Queria ensina-lo, catequiza-lo. Essa é a expressão usada. E a catequese é saber que a linha que divide o mundo entre bons e maus, certo e errado, não existe. É apenas uma abstração dos simples, dos ingênuos. Grego ensina a Conrad que todos carregamos o bom e o mau dentro de nós e que a vida é uma contradição sem sentido.
Caídos do paraíso, nos deliciamos com a catequese aplicada por Veríssimo. Dono de frases rápidas e certeiras, de uma construção textual dinâmica e difícil de comparar, o gênio do sul faz um livro todo correto, com várias metalinguagens e citações de clássicos da literatura, ele mostra que o humor não precisa ser escrachado e o drama não precisa ser chato. Decididamente nos encontramos um pouco mais céticos, mais realistas depois do livro, mas quem busca conhecimento precisa estar certo que abandonou o paraíso.