Malditos poetas do futebol

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Que os escritores são mentirosos, todo leitor sabe – ou pelo menos deveria saber. Eles engrandecem e enchem de poesia fatos comuns do cotidiano, fazendo meticuloso trabalho com a linguagem, transformando seus textos no que se classifica como literários. Tudo para entreter aqueles que buscam uma realidade mais feliz ou trágica ao abrir um livro. Ou, talvez, os próprios fazedores de ficção queiram criar mundos melhores que seus próprios, alegorias que compõem suas visões de realidade, vai saber, quem sabe? Malditos poetas.

Havia um menino viciado em gibis de super-heróis, filmes de ação e, acima de tudo, futebol. Apesar de ter nascido numa família de palmeirenses e corintianos, escolheu o São Paulo Futebol Clube como time do coração. Chorava nas derrotas, maldizendo Deus e o mundo. Ficava sem voz nas vitórias. Desenvolveu superstições – acreditava que segurar o escudo do time estampado na camisa de tecido sintético durante os jogos traria vitórias certas. Pobre diabo. Como sofreu na derrota por 7 a 2 para a Portuguesa em 1998, com direito a gol do meio de campo. Tamanho fanatismo preocupava sua mãe.

Era uma época em que poucos possuíam TV a cabo. Por isso, quando os jogos não eram televisionados, ele buscava a melhor sintonia no rádio da cozinha. Morava num bairro baixo e periférico. A qualidade da transmissão dependia do tempo e o vento.

Tinha seus narradores favoritos. Dirceu Maravilha, Fiori Gigliotti e José Silvério estavam no topo dessa lista. A habilidade que eles tinham com as palavras conduzia sua mente para dentro do campo, imaginando como seria cada jogada, cada drible, cada carrinho, cada chute, cada gol. “Se for pro gol me chama que eu vou”. “No toque-toque da bola, no tic-tac do tempo”. “Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo”. Ao fim de cada jogo, sentia-se exausto. Era muita adrenalina.

O tempo passou, o menino cresceu, estudou, arrumou emprego, mas continuou fiel ao tricolor paulista. Passados quase vinte anos, já não é mais preciso ligar o rádio. Possui todos os canais de esporte possíveis, inclusive os pay-per-view. Assiste a todos os jogos pela televisão de seu quarto, atual antro de sofrimento. Mas o que o faz sofrer não é apenas a péssima qualidade do material humano que compõe seu time. Apesar de pagar uma mensalidade para ter o direito de acompanhar os jogos ao vivo e a cores, os narradores são péssimos. Quando não se entregam ao marasmo do jogo, são irritantes entusiastas. Não possuem o timing, a habilidade com a oratória.

Mas o que mudou? Os times de antes eram melhores? Os jogos mais emocionantes? Havia mais raça, vontade, dedicação por parte dos jogadores?

Não. O diferencial era que, no rádio, os narradores se desdobravam para apresentar os jogos melhores do que eram. Compunham um tipo de realismo mágico mentiroso que prendia a atenção dos torcedores do início ao fim. O drible mais comum ganhava tons de obra de arte na voz dos radialistas. Seus gritos de gol davam um sabor especial ao grande momento do futebol, ainda que fosse o tento de honra numa acachapante goleada. Uma troca de passes entre dois cabeças de bagre ganhava a qualidade da autoria de Pelé e Coutinho.

Os jogos eram igualmente ruins (ou até piores), mas a lábia de caras mentirosos como Dirceu ou Fiori os tornava épicos. Assim como os escritores que inserem poesia nos seus textos, esses narradores da velha guarda davam ao futebol algo que se perdeu na imagem em alta definição. A ficção bateu de 7 a 1 no mundo real. Malditos poetas.

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