O poeta Manoel de Barros faleceu hoje em Campo Grande aos 97 anos de idade.
Sempre considerei os poetas os mais sofisticados organismos vivos sobre a face da Terra. E, hoje, mais um exemplar dessa nobre estirpe partiu: Manoel de Barros. No momento que escrevo, os jornais contam que o poeta pantaneiro estava internado desde 24 de outubro para uma cirurgia – mas a causa mortis ainda não foi divulgada. Martha, a filha de Barros, disse que depois da perda de seus dois irmãos e, por causa da idade do poeta (quase 98), “ele estava se apagando como uma velinha”. Há uma linda e comovente poesia nessa observação.
Perdi meu pai há menos de um mês (de uma forma trágica e cruel) e posso imaginar a dor de Martha e de todos que o amavam. Nós, admiradores, sempre teremos o poeta. Para ela e para os outros familiares e amigos, creio que não bastará. Sempre faltará o homem, Manoel de Barros. Talvez a grande tragédia da vida também seja o seu grande milagre: continuar vivendo mesmo sabendo que aqueles que amamos deixarão de existir, de uma hora pra outra, sem que nada possamos fazer contra isso.
Manoel de Barros é um dos meus poetas preferidos – infelizmente, quase todos já se apagaram como uma velinha. Nele, além da rara beleza e simplicidade dos versos, gosto da sua opção pelas coisas desimportantes e insignificantes da vida, pelas causas perdidas, pelos homens inadaptáveis, pelos valores expressos em sua poesia, que não são os mesmos que levarão a nossa sociedade ao colapso. Descanse em paz, Manoel de Barros. Que possamos fazer um novo amanhecer.
Então, agora, sem mais delongas, vamos poetar:
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que as dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor os meus silêncios.
Retrato do artista quando coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
O fazedor de amanhecer
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.
Tratado geral das grandezas do ínfimo
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.