O poeta nos lembra de que a poesia inscreve um tempo, um lugar, um sentimento
Ainda pouco lido e divulgado no Brasil, o poeta e crítico Manuel de Freitas apresenta uma produção tão representativa e apaixonante quanto à de seu patrício e contemporâneo, Valter Hugo Mãe, atualmente abundante nas estantes brasileiras. Embora a paridade não se confirme à risca em termos estéticos (a exemplo da nudez e da beleza da linguagem em Mãe, frente à palavra “despretensiosamente” elaborada e à força imagética em Freitas) no texto de ambos é claro um sentimento expresso por Valter Hugo Mãe em entrevista ao programa “Roda Viva”:
“A minha geração cresce, ganha consistência, em liberdade, em democracia […]. Acho que por causa desta liberdade minha geração se desligou, se desvinculou muito. Então, hoje ela é uma geração que nem sempre está preparada para pensar. É a primeira geração da discoteca sem limites, da bebida sem limites, enfim, uma geração que tinha, pela primeira vez, um acesso quase ilimitado aos estudos superiores, aos estudos acadêmicos e, por isso, tudo parecia muito garantido, muito fácil, como se fosse um direito adquirido, o que faz com que, subitamente, a geração se torne muito vazia […]”
Para além de uma opinião pessoal sobre sua geração, a fala de Mãe expressa a visão de uma época. Por isso, talvez ela seja singular para traduzir, em linhas gerais, a obra de Manuel de Freitas: vivendo a frustração de um hoje que não corresponde à prosperidade prometida pelo ontem, nada resta além de gozar plenamente do declínio a que se está fadado: “De facto, crescemos em alccolémia,/ acordamos tarde, em pânico,/ e perdemos os dias e os dentes/ com uma espécie de resignação./(Não temos, ao que parece, serventia.)”. Tomada como um todo, a obra de Freitas apresenta, à maneira inteligente e refinada do poeta, uma poesia ordinária e desprezível cujo lugar por excelência é a taberna . Ela surge onde se encontram vencidos, marginais e outros “ninguéns” comungando “Sopa de feijão,/ pataniscas,/ salada de orelha,/ ovos cozidos/ sardinhas de lata,/ tabaco,/ moelas/ E o ruído do Epifânio,/ na cozinha.”.
É interessante perceber como o universo da taberna, mais do que uma referência, é também a voz, a matéria viva de que o poema é feito. Em meio a cigarros findos, cinzeiros lotados, copos meio cheios/meio vazios de qualquer espécie de álcool, conversam uma memória cadenciada pelo fado português e rastros da cultura pop, um inglês estadunidense traduzido e reverberado pelas circunstâncias e seleções de jukeboxes ao ritmo do blues, do jazz e do rock dos anos 80: “Enquanto/ se arrasta mais uma vez, vindo da jukebox, um fado/roufenho da cor da mentira: Valeu a pena,/o que não pode valer – este insucesso cabrão”.
Não são muitos os poetas que, como Baudelaire, alcançam com um olhar sensível a beleza que há no caos e na melancolia. O título de um dos primeiros livros de Manuel de Freitas –Os Infernos Artificiais– demonstra a ciência deste fato. E não é apenas o poeta maldito que reconhecemos em Freitas, há também Homero, Rimbaud, a poesia beat e, claro, Camões, Cesário Verde, Pessoa, dentre outros. É também em uma nítida referência ao Homem sem qualidades (aquele que tudo poder ser, mas nada é), de Robert Musil, que Freitas intitula a antologia Poetas sem qualidades, por ele organizada e assim definida: “A um tempo sem qualidades, como aquele em que vivemos, seria no mínimo legítimo exigir poetas sem qualidades”.
Aqui o poeta nos lembra de que a poesia inscreve um tempo, um lugar, um sentimento, uma presença. Marcada por uma cultura “global” em um Portugal já periférico na Europa, a lírica de Freitas olha com afeto e ironia a grandiloquência do velho Camões. Constantemente à deriva de reflexões embriagadas, sua poesia é de extrema lucidez e diz muito aqueles que já se sentiram, pelo menos uma vez, acumuladores de anos e frustrações:
Trecho do poema “BWV 988”, do livro A última Porta
(…)
É tudo – sabes? – tão dolorosamente simples.
A mão que não quer esperar-me,
o rumor sórdido dos bares,
a certeza de que a vida, a vida,
não deveria ser exactamente assim
Reúno, numa espécie de voz,
esses estilhaços. Sei que não vale
a pena, sempre o soube.
Há os que se despedem e os que não.
E, indiferentemente, progridem
as diferentes coisas. Carteiros
matinais, aviões, poetas que dão
corda à musa e escolhem
devagar o timbre da gravata.
Estão no seu direito, partilham
o bem comum, a cidadania do terror.
E eu, infelizmente, existo. Abro
outra lata de cerveja, sob
o olhar reprovador do gato. Sim,
gostava de ser felino – uma coisa
mansa, dolorosa, ao abrigo da tormenta.”