Maquiavel, o leão, a raposa e a contemporaneidade de sua obra

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Sobre como Maquiavel soube salvar sua cabeça e criar uma obra atual, sem prazo para perder sua contemporaneidade.

maquiavel

Nicolau Maquiavel foi  um pensador nascido em um tempo em que “perder a cabeça” não era apenas figura de linguagem, e sim uma possibilidade sempre presente rondando a cabeça de nobres e plebeus. Ele nasceu e cresceu em Florença na Itália em 1469, foi diplomata, conheceu diversos reis e o papa em suas viagens pela Europa.

Maquiavel não era um sujeito muito bem quisto. Também não era para menos. Possível admirador de César Bórgia, um líder temido e implacável, filho ilegítimo do papa Alexandre VI, não era de bom tom desagradá-lo, e Maquiavel  soube preservar sua cabeça por um bom tempo.

Inspirado em suas impressões sobre Bórgia, escreveu a  sua mais famosa obra, O Príncipe, livro de cabeceira obrigatório para todo político desde então embora ninguém admita, e quem sabe a maior obra de autoajuda de todos os tempos sobre como chegar e se manter no poder. A tão conhecida expressão  “os fins justificam os meios” está relacionada ao seu pensamento e já diz muita coisa. Maquiavel foi também dramaturgo e escreveu Mandrágora, que conta  histórias de manipulações políticas, e é encenada até hoje.

Não podemos esquecer que ele viveu numa época em que a Itália era um lugar perigoso, e os reinados ao redor viviam de olho nos territórios de César Bórgia, sempre atento e fazendo o que fosse necessário para preservar o seu reino e porque não, torná-lo maior. Para Maquiavel, o mais importante era manter-se no poder, e quase todas as formas de fazer isso eram aceitáveis. Sem pretender fazer qualquer juízo moral de Maquiavel , mas se atendo aos aspectos, digamos, práticos ou pragmáticos, podemos notar algumas coisas interessantes do seu pensamento nos dias atuais.

Para Maquiavel e para horror dos seus leitores, às vezes, é melhor mentir, quebrar promessas e até matar os inimigos. Um príncipe não precisaria se preocupar em manter a sua palavra, dizia ele. Um príncipe eficaz tem de aprender a não ser bom. Em teoria é melhor ser amado do que temido, mas isto é algo difícil de conseguir, então seria muito mais seguro ser temido. Ele dizia que se você confiar num povo que o ama, correrá o risco de ser abandonado em momentos de crise, já se for temido o povo terá medo de traí-lo.

Outro pensamento interessante de Maquiavel, é quando ele diz  que um líder precisa combinar qualidades humanas com qualidades animais, citando a raposa e o leão:

 A raposa é perspicaz e consegue reconhecer armadilhas, ao passo que o leão é extremamente forte e ameaçador. Não é bom ser como um leão o tempo todo, agindo apenas com a força bruta, pois isso o levará ao risco de cair numa armadilha. Também não se pode agir somente como uma raposa esperta: você precisará da força do leão para se manter em segurança.  Porém, se confiar na própria bondade e senso de justiça, não durará muito tempo. Felizmente, as pessoas são ingênuas: deixam-se levar pelas aparências. Portanto, como líder, é preciso ter êxito, demonstrando ser honesto e gentil enquanto quebra promessas e age cruelmente.

É possível identificar alguma semelhança com os comportamentos de líderes da atualidade?  Essa comparação de Maquiavel nos faz pensar  que o melhor, por exemplo, para um líder político, é manter o povo como animal de rebanho, e que agir como leão não é permitido para todos, mas em compensação qualquer um pode agir como raposa e apostar na sua astúcia.

Conforme Maquiavel, novamente para horror dos que acreditam na virtude nata da bondade, o cinismo faria parte da natureza humana. Ele pensava que os seres humanos eram egoístas e portanto, suspeitos, gananciosos e desonestos; e só cumpririam suas promessas se tivessem medo das conseqüências de não cumpri-las. Então, a maldade no caso se justificaria pelo seu caráter utilitarista, por uma causa maior: a do eu mesmo.

Seria Maquiavel um pessimista desiludido com a humanidade? Na verdade, ele era tido como um realista e porque não um oportunista, já que acreditava que o sucesso depende muito da boa sorte, mas, também, que podemos melhorar as chances de sucesso agindo bravamente e rapidamente, se preparando e agarrando a oportunidade tão logo ela surja.

César Bórgia, em uma ocasião, ao saber que os membros da família Orsini pretendiam derrubá-lo, os levou a crer que não sabia de nada. Então, induziu os líderes a se encontrarem com ele e quando chegaram, matou a todos.

Cesar-Borgia
François Arnaud interpreta César Bórgia, em seriado que conta a história da família Bórgia.

Um outro episódio que ilustra bem os métodos de Bórgia, ocorreu quando ao assumir o controle de uma região chamada Romanha, colocou no poder um comandante especialmente cruel chamado Remirro de De Orco, que apavorava o povo obrigando-o a lhe obedecer. Quando a região se acalmou, Bórgia, para evitar que o povo se juntasse contra ele, resolveu  afastar-se da crueldade de De Orco. Então o matou, esquartejou o corpo e espalhou os pedaços na praça da cidade para que todos vissem. Dessa maneira repulsiva, Bórgia manteve o povo do seu lado, que ficou feliz por ter se livrado de De Orco e ao mesmo tempo amedrontado percebendo que Bórgia teria encomendado a morte dele, e se ele era capaz de fazer isso com seu próprio comandante, ninguém estaria seguro.  Muitos líderes políticos já usaram os mesmos métodos de César Bórgia para se manterem no poder, e se não lhe colocam limites, o mundo todo pode correr perigo.

Segundo Maquiavel,  Bórgia fez tudo corretamente para se manter no poder, mas foi derrotado pela má sorte ao adoecer justamente quando foi atacado. Maquiavel  não perdeu sua cabeça, não literalmente, mas foi afastado da política e banido para sempre de Florença quando os Médici retomaram o poder, acusado de fazer parte de uma conspiração.

Se Maquiavel vivesse nos dias de hoje, possivelmente aprovaria  a forma como seu pensamento foi aprimorado e colocado em prática ao longo do tempo, em saber que suas lições foram assimiladas por todos, não apenas pelos “reis”. Caso típico de alunos que superaram o mestre, mesmo aqueles que não leram sua obra, parece até que entendem suas ideias por instinto. Com a diferença  que na modernidade tudo se tornou mais sutil e não é mais necessário eliminar o oponente de forma literal.

Muitas pessoas pensavam que Maquiavel era um homem mau, tanto é assim que a palavra “maquiavélico”  tem origem no seu nome. Já outros filósofos  acreditam que ele quis apenas demonstrar que talvez o bom comportamento não sirva para os líderes, e acabou demonstrando o que acontece em geral na política, desde a exercida no âmbito do Estado, dos partidos, até aquela das relações sociais do cotidiano, das relações de trabalho, onde às vezes, a meta é simplesmente “preservar a cabeça”,  uma simples questão de instinto de sobrevivência  na “selva”.  Nesses casos, nem leão, nem raposa, melhor recorrer aos animais possuidores do recurso da camuflagem.

E  um Viva a Maquiavel!

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