Mare of Easttown: uma série demasiadamente humana

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Mare of Easttown: uma série demasiadamente humana
Cartaz da série

Mare of Easttown, série da HBO estrelada por Kate Winslet, é uma das melhores do gênero de investigação, com personagens humanos e complexos.

Cartaz da série

Uma série instigante e imprevisível

Em meados de abril deste ano, sem muito alarde, foi ao ar pela HBO o primeiro episódio da série policial Mare of Easttown, cujo principal atrativo parecia ser sua atriz principal, a oscarizada Kate Winslet.

Afora o interesse sempre pertinente pelo trabalho de uma das melhores atrizes da atualidade, tudo levava a crer tratar-se de mais uma dessas histórias: a narrativa envolvendo uma detetive que investiga um crime em sua pequena cidade, ao mesmo tempo em que precisa lidar com seus dramas pessoais. É uma história que parece já ter sido contada inúmeras vezes pelo cinema e pela televisão.

Mas quando o último episódio estreou, no final de maio, quebrando recordes de audiência nos Estados Unidos, já era possível afirmar que Mare of Easttown logrou êxito em criar para si uma identidade própria que, escapando às convenções, garantiu-lhe uma vaga no panteão das séries mais instigantes – e imprevisíveis, o que é um feito e tanto, considerando o gênero a que pertence – dos últimos tempos.

A história

Na trama, Winslet dá vida a Mare Sheehan, uma investigadora que, por residir e atuar desde sempre na comunidade de Easttown, é conhecida por todos os habitantes da região, possuindo com alguns deles laços que ultrapassam a mera conterraneidade, o que aumenta o seu grau de envolvimento com os casos que deve solucionar.

Às voltas com o desaparecimento de uma jovem há cerca de um ano, Mare vê-se cobrada para dar resultado à investigação. Porém, quando outra jovem surge morta

Cartaz da primeira temporada de Stranger Things

nas redondezas de uma floresta, a áurea de mistério se intensifica ao redor da cidadezinha, e a protagonista precisa enfrentar os dilemas de buscar um culpado em meio a um grupo de pessoas que lhe são inconvenientemente próximas, além de guardar dentro de si, ainda, as feridas envolvendo a perda recente de um filho.

Nesse ponto, a trama se assemelha à de outra série de sucesso, Stranger Things, que aborda um enredo bem peculiar, porém de forma ficcional. Sua quarta temporada está prevista para 2022 na Netflix. Vale a pena assistir às duas.

Mistério e drama na medida certa

O segredo do sucesso da série parece estar no equilíbrio entre duas forças que, em produções mais convencionais, não costumam se interpenetrar de maneira tão natural como ocorre aqui, o que possivelmente tem efeito direto na verossimilhança que a história imprime desde o princípio. O elemento criminal é apto a sustentar um clima de mistério que perdura até os instantes finais do último episódio, ao passo que os traumas pessoais com que a personagem-título deve lidar enquanto exerce seu ofício acrescentam à investigação uma dose de intimidade que contribui no desenvolvimento de uma relação empática com o público, cuja identificação com Mare só pode ser advinda do forte componente humano que a caracteriza.

De fato, esse é um dos pontos altos da narrativa. Mare é falha e guarda em si sentimentos reprimidos que a tornam uma mulher fechada, com pouca disposição para viver a vida leve da época de sua juventude, quando brilhou no time de basquete feminino da comunidade.

Mas Mare é também uma avó amorosa, uma amiga leal e uma profissional dedicada, revelando-se nas entrelinhas de seu cotidiano a vontade de superar os fantasmas do passado envolvendo a relação conflituosa com o filho que perdeu para o suicídio.

O humano representado em toda sua complexidade

Mare é, afinal, humana, e o brilhantismo com que Winslet a incorpora, ancorada no texto certeiro de Brad Ingelsby – roteirista até então pouco conhecido em Hollywood –, faz da personagem um ser complexo e fascinante, como, em verdade, somos todos nós.

Somado a isso, um dos maiores trunfos da série é a atenção dada ao desenvolvimento dos personagens secundários, cujos dramas circundam a protagonista de maneira a criar um microcosmo de relações que chama a atenção não apenas pelo realismo envolvente que nos faz esquecer tratar-se, Easttown, de uma cidade fictícia, mas também pelo potencial de mistério que vai se expandindo a cada episódio, enredando todas essas relações em uma trama que envolve assassinato e crueldade.

Final surpreendente

Diante de uma jornada dramática tão intensa, com foco mais nos conflitos psicológicos da protagonista – e nas consequências do trauma no dia a dia de uma comunidade – do que na narrativa criminal propriamente dita, nem mesmo seria necessário que a resolução do mistério central se desse de maneira satisfatória, uma vez que o caminho percorrido até o final da série já se mostrava suficiente para que pudéssemos com ela nos deleitar.

Ainda assim, o último episódio reserva ao espectador uma sequência de reviravoltas tão grande que fica difícil imaginar que alguém possa ter acertado a previsão, antes dos minutos finais se aproximarem, acerca da revelação sobre quem foi o verdadeiro responsável pelo brutal assassinato que vitimou a jovem Erin (Cailee Spaeny).

Spoilers à parte, pode-se dizer que aqui a narrativa ganha ares de tragédia, já que a descoberta final acrescenta mais uma camada de desesperança em relação às novas gerações de uma comunidade que se encontra despedaçada, e da qual não há para onde fugir: em verdade, como simbolizado na já antológica cena do encontro final entre Mare e sua amiga de tantos anos, Lori (Julianne Nicholson), o abrigo só pode ser encontrado nos braços dessa mesma comunidade.

Saldo positivo – e doído

Se há um ponto fraco em Mare of Easttown, ele parece estar na necessidade de, por vezes, tentar extrair algum alívio cômico em meio ao peso do drama familiar e humano que a série tão bem retrata.

Nesse contexto, a despeito do talento de Jean Smart, comediante célebre que encarna o papel da espaçosa mãe da protagonista, o humor acaba ficando deslocado na trama, causando constrangimento por forçar um riso aparentemente fora de hora e lugar.

Nada disso, porém, compromete o resultado geral da obra, que marca território como uma das melhores de seu gênero, servindo, ainda, para resgatar uma forma de ver televisão que já parecia ultrapassada: o lançamento de um episódio por semana subverteu a tendência moderna do binge-watching, e os bons ganchos criados ao final de cada fragmento da história fizeram aumentar a ansiedade de quem não andava mais acostumado a ter de esperar tantos dias para assistir ao desenrolar de uma trama seriada.

Mare of Easttown, assim, parece fundir um sentimento de nostalgia ao novo que propõe: o apego à melhor tradição das histórias policiais que envolvem o público por seu componente de mistério alia-se aqui ao desenvolvimento de dramas humanos profundos que prescindem do suspense para se fazerem doer. E como doem.

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