Mário de Andrade no Rio: o escritor como personagem da própria história

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Em Mário de Andrade – Exílio no Rio, Moacir Werneck de Castro tenta transmitir toda a efervescência que marcava a cena cultural carioca, com o escritor transitando maravilhado e um tanto entontecido em sua estadia pela cidade

Mário de Andrade em sua casa no Rio de Janeiro (1938).

Ao final da leitura de “Mário de Andrade – Exílio no Rio” (Editora Autêntica), uma dúvida: o livro é a biografia de um escritor relatando o período que ele viveu fora da sua cidade natal ou a versão romanceada de fatos reais? Tão prazerosa era a leitura, tão bem construídos os dramas e personagens que, em determinados momentos, foi possível acompanhar as aventuras e desventuras de Mário de Andrade como se estivesse lendo um romance em que ele era reticente personagem, uma tora de madeira a se deslocar em meio a um oceano de nomes, de fatos e de correntes artísticas que insistiam em mudar o seu percurso – e sobre os quais o poeta soube aproveitar o que era interessante e descartar o supérfluo.

Para criar essa sensação de ler um misto de reportagem e romance, ajudou muito o fato de Moacir Werneck de Castro (1915-2010) ter sido um jornalista de grande apuro técnico, além de possuir um forte engajamento político, atuando tanto na função de escritor quanto como editor e tradutor. No período que considera ser “de juventude”, estabeleceu amizade com Mário de Andrade, tornando-se seu confessor por meio de conversas e longas cartas (as quais se encontram reproduzidas na última parte do livro, demonstrando todo o carinho e respeito que o escritor lhe dedicava). Graças a essas condições pessoais, quando decidiu escrever sobre os assim chamados “anos de exílio” de Mário de Andrade – o período de tempo em que, frustrado, o escritor saiu de São Paulo e mudou-se para o Rio de Janeiro – a sua intenção manifesta era transmitir toda a efervescência que marcava a cena cultural carioca, com Mário de Andrade transitando maravilhado e um tanto entontecido em meio ao cenário. A construção do livro em segmentos curtos e parágrafos de redação clara e objetiva transformam a leitura em um caleidoscópio de informações não somente sobre o escritor, mas igualmente sobre a política, a economia, a sociedade e a cena cultural de uma época decisiva para os rumos nacionais.

Ao mesmo tempo, Moacir Werneck de Castro pretendia transformar as suas memórias sobre Mário de Andrade em um documento histórico, tanto que buscou fontes bibliográficas para explicar acontecimentos e esclarecer algumas lacunas. O resultado é uma prosa encantadora e informativa, que descreve detalhes do passado de forma natural, usando uma linguagem próxima do coloquial sem soar forçada:

“A Taberna da Glória, a poucos passos do edifício da rua Santo Amaro, era o ponto de Mário de Andrade, que lá ia de noite tomar chope com os amigos, todos mais jovens. Além do grupo da Revista Acadêmica, costumavam aparecer Guilherme Figueiredo, Dante Viggiani, Otávio Dias Leite, Henrique Carstens e Pedro Nava, o mais próximo a ele em idade, e outros.

Mesa alegre, de conversa variada e muita discussão. Quando a roda era mais íntima, vinham à baila problemas pessoais da moçada, e então ele era o conselheiro fraterno. Não raro se largava em confissões sobre a sua natureza de escritor e artista, mas sempre escudado no pudor de revelar o que chamava sua ‘verdade interior’.”

Conforme se percebe pelo trecho acima, é possível ver Mário de Andrade em meio a uma mesa de artistas, tomando chope e trocando confidências sobre a sua vida, ainda que tais confissões sempre tenham mantido um aspecto reservado. Esse detalhe sobre Mário de Andrade é o que mais chama a atenção do autor: ele era uma esfinge ansiosa para ser revelada, mas que prezava o seu mistério. Mesmo cercado por pessoas, mesmo escrevendo críticas literárias e crônicas para os jornais, mesmo proferindo conferências, mesmo se envolvendo em contendas artísticas, existia uma parte do escritor que era intocada pelo público, algo íntimo e preservado a duras penas.

Por este motivo, é grande a tentação do jornalista de transpor o fosso da objetividade e aventurar-se no terreno insondável dos pensamentos mais secretos de Mário de Andrade. Pela amizade que unia ambos, é um movimento compreensível, mas os adeptos de uma biografia mais ponderada e documental podem se sentir enganados pelo grande número de ocasiões em que Moacir Werneck de Castro tenta adivinhar os pensamentos do escritor que se dizia ser “trezentos não, trezentos e cinquenta!”, como demonstra o trecho:

“Recusava-se a aceitar uma literatura e uma arte que, dando desmedida ênfase ao social, tendiam, por leviandade de uns ou falta de talento de outros, a cair na demagogia, e que justificavam, em nome do caráter supostamente revolucionário dos fins, o desprezo pelos meios próprios à obra de arte, ou seja, o domínio do artefazer. A batalha da crítica realça um traço importante da sua personalidade: o apego à ‘lealdade interior’ que o fazia desdenhar facilidades oportunísticas e acomodações. Arriscava-se a ficar sozinho, ou quase; expunha-se à incompreensão quando afirmava: ‘Tudo é possível neste mundo vasto, mas também é incontestável que somente na solidão encontraremos o caminho de nós mesmos.”

É difícil entender o que são pensamentos pessoais do jornalista a respeito do seu objeto de análise ou o que era efetivamente pensado por Mário de Andrade. Da mesma forma, é difícil para Moacir Werneck de Castro esconder a sua amizade ao tratar de assuntos então delicados, como a assim descrita “pansexualidade” de Mário de Andrade – para não dizer homossexualidade. Nesse momento, o jornalista deixa a posição neutra e tece uma série de defesas do escritor enquanto ataca os seus detratores, em especial Oswald de Andrade.

Ainda assim, tal circunstância não prejudica a leitura; ao contrário, deixa o livro mais interessante. Por meio da descrição das palavras e das atitudes do escritor em meio a um período conturbado na vida dele, cercado por uma efervescente cena cultural com quem mantinha uma relação misto de fascínio e de horror, o jornalista realiza uma série de reflexões sobre o fazer artístico que, graças às suas fontes documentais e às dezenas de entrevistas que realizou, se não são fidedignas, chegam bem próximo da realidade.

É possível que a pós-modernidade, com a sua ênfase dada ao documentalmente provado e ao realismo sem licenças criativas, considere “Mário de Andrade – Exílio no Rio” como uma obra ficcional baseada em fatos reais, ao molde dos alertas inseridos no início dos filmes que pretendem contar fatos efetivamente acontecidos. No entanto, se o leitor aceitar o jogo do autor e se concentrar no andamento da história ao invés de colocar em dúvida cada frase, acabará descobrindo um Mário de Andrade diferente da imagem pintada pelos livros escolares ou pela História da Literatura. Verá o escritor como um personagem ultrapassando um importante rito de passagem na sua vida e na sua arte, envolvido em questões mundanas enquanto se interroga sobre o alcance efetivo da sua obra poética. Porém, mais do que tudo, verá que, por trás da aura literária, existia um homem frágil e indeciso para quem a poesia era mais forte do que o próprio corpo.

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