Quem gosta de ler biografias (autorizadas ou não) provavelmente tem acompanhado a polêmica dos últimos tempos sobre o assunto. O caso já é antigo. No ano passado, a Associação Nacional dos Editores de Livros – Anel – entrou com uma ação questionando dois artigos do Código Civil. Segundo matéria que saiu no G1:
Um dos artigos determina que é preciso autorização para a publicação ou uso da imagem de uma pessoa. E que a divulgação de escritos, a transmissão, publicação ou exposição poderão ser proibidas se atingirem a honra, a boa fama, a respeitabilidade ou se tiverem fins comerciais. O outro artigo diz que a vida privada é inviolável. A Associação dos Editores alega que a necessidade de autorização prévia é uma forma de censura. E que isso ataca a Constituição, que prevê a liberdade de expressão e o direito à informação. Os editores pedem que o supremo declare a inconstitucionalidade parcial dos artigos, deixando claro que não deve haver autorização prévia para a publicação de biografias.
Ou seja: a Associação, junto com escritores, jornalistas e leitores, diz defender o direito à liberdade de expressão. O grupo “Procure Saber”, por outro lado, alega que a proposta 393/2011 (ainda a ser aprovada e que proibi a publicação de biografias não autorizadas) apenas prevê o pedido de autorização para que uma biografia seja publicada, na tentativa de permitir que a figura pública em questão tenha sua privacidade mantida e respeitada.
A polêmica ganhou força durante o mês de outubro, quando as opiniões dividiram-se entre a favor e contra à proposta, criando dois grupos bem específicos e gerando debates e mais debates pelo Brasil a fora. Segunda-feira, por exemplo, vai rolar mais uma discussão em São Paulo, promovido pela Câmara Municipal de SP.
O assunto controverso rendeu uma entrevista ao jornalista e escritor Mário Magalhães, primeiro colocado no Prêmio Jabuti deste ano, na categoria biografias. O premiado publicou, em 2012, o livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”. Todo o processo de criação e a opinião do autor a respeito da questão sobre as biografias não autorizadas, você confere na entrevista exclusiva que Mário Magalhães concedeu ao Homo Literatus.
E aí, tire suas próprias conclusões, sem esquecer de deixar sua opinião nos comentários.
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Mário, quando e como surgiu a decisão de escrever a biografia sobre Marighella? E por que ele?
Eu nasci na primeira semana de abril de 1964, a mesma do golpe de Estado que mudou a história. Em 2003, eu tinha 39 anos e era repórter especial de jornal. Não queria virar quarentão sem mergulhar numa reportagem de fôlego, distante das amarras de tempo (para apurar) e espaço (para escrever) características de uma redação.
Pretendia escrever uma reportagem sobre uma vida, ou seja, biografia. E não encontrei personagem mais fascinante, goste-se ou não dele, do que o revolucionário baiano Carlos Marighella (1911-69). Além da trajetória trepidante do protagonista, estimulava-me contar quatro décadas frenéticas do século XX no Brasil e no mundo, dos anos 1930 aos 1960. Estimei em dois ou três anos o tempo para concluir o livro, mas o mergulho durou nove anos, dos quais cinco anos e nove meses em dedicação exclusiva.
Foram quase dez anos de estudo. O que aconteceu ao longo desse tempo? Ou melhor: qual é o processo de criação para uma biografia bem escrita e de sucesso, como é o caso do seu livro?
Biografia jornalística equivale a reportagem. Concentrada em uma vida, mas reportagem. E reportagem constitui um gênero do jornalismo. O método de elaboração da biografia é o mesmo empregado numa reportagem de jornal, com os seguintes passos: ideia, consolidação da pauta, apuração, redação e edição. A diferença é que o volume monumental de informações reunidas exige mais disciplina do repórter, no caso o biógrafo.
Entrevistei 256 pessoas, algumas em várias sessões, acumulando quase mil horas de gravação. Tive acesso a cerca de 70 mil páginas de documentos oriundos de 32 arquivos públicos e privados de Brasil, Paraguai, Estados Unidos, República Tcheca e Rússia. A bibliografia soma 500 títulos, perto de 600 volumes.
Havia dois obstáculos principais a encarar. Por um lado, certa historiografia oficial, mais do que carimbar Marighella como um sanguinário sem escrúpulos, tentou eliminá-lo da memória nacional. Por outro, por questão de sobrevivência, ele tentou apagar suas pegadas. Para quem tem vocação de repórter, o desafio ficou ainda mais sedutor.

A despeito da investigação abissal, o que me deu mais trabalho foi escrever. Quando acumulamos informações demais, existe o risco altíssimo de produzir um relato insosso e sem encanto, relatorial. Isto é, de destruir a narrativa. Eu tinha o objetivo estético de escrever um livro de tirar o fôlego do leitor, assim como a vida de Marighella foi de tirar o fôlego. Foi o que busquei da primeira à última frase. A propósito, o livro começa e termina com as mesmas duas palavras: “Carlos Marighella”.
A escolha da personalidade influencia na criação de um livro biográfico? O que leva um jornalista/escritor a escrever uma biografia, de acordo com a sua experiência?
O repórter tem que gostar de contar histórias. Marighella viveu tão intensamente, em um tempo tão alucinante, que tudo ficou mais fácil para mim. Ou difícil, a considerar o volume de informações não aproveitadas. Tive que selecionar. Penso que o leitor ganhou, pois só sobrou o que é muito importante ou muito interessante.
Diante da polêmica sobre as biografias não autorizadas, vários artistas, estudiosos e escritores manifestaram sua opinião. O que você pode acrescentar ao público que acompanha o Homo Literatus (dizemos acrescentar, porque consultamos seu texto Meu Caro Chico)? É certo ou errado proibir biografias não autorizadas?
A única grande democracia do planeta que impõe censura prévia a biografias não autorizadas é o Brasil. Somente quando os biografados ou seus herdeiros têm espírito público a obra escapa de censura.Escrevi dois textos sobre o assunto.
Primeiro, “Caixa-preta de um biógrafo falido”: http://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2013/10/11/caixa-preta-de-um-biografo-falido-debate-publico-confissoes-privadas/
Depois, “Meu caro Chico”: http://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2013/10/17/meu-caro-chico-minha-carta-ao-chico-buarque/
No mesmo texto acima citado, você afirmou que “Biografias são reportagens, que constituem gênero do jornalismo.” Se biografias são reportagens, elas não fazem parte da ficção literária? É possível dissociar uma coisa da outra?
Biografias jornalísticas, conceitualmente, pertencem ao universo da não ficção. No caso do livro que eu escrevi, não há um só espirro que não tenha lastro na realidade. Por isso, ao fim do volume, sem números de referência ou notas de rodapé nas páginas com a narrativa, organizei 2.580 notas sobre fontes.

Se eu digo que em 1964 Marighella sentiu gosto adocicado no sangue que escorreu por sua boca, ao ser baleado, sinto-me obrigado a informar a fonte. A criatividade do autor é voltada para a construção da narrativa. Inspiro-me nas ferramentas clássicas da literatura, sobretudo do romance. Os ingredientes do livro também são os de romance. A diferença é inegociável, no entanto: não há uma só palavra sobre fato inventado. Escrevi uma obra de não ficção. Com tanta coisa espetacular no mundo, o que não falta é matéria-prima para boas histórias.