Matar o tempo ou multiplicá-lo: qual a real função da literatura?

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Como a literatura entra em nossa vida? Como construímos nossas concepções sobre ela? De que forma passamos a conceber o que é ou não literário?

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Arte de Christina Tsevis

 

No meu caso, tudo isso não foi ensinado em lugar nenhum: foi fruto do próprio contato com os livros em si. Isso não significa que “aprendi sozinho” (aliás, nem acho que exista tal coisa: todo conhecimento decorre, direta ou indiretamente, da interação entre os seres humanos). Simplesmente afirmo que, a partir de influências de pessoas que generosamente me apresentaram obras importantes, fui criando meus próprios conceitos sobre a arte literária.

Já na adolescência, caiu em minhas mãos a novela A Metamorfose, de Franz Kafka. Fiquei intrigado de cara: o livro narrava coisas esquisitíssimas, que os personagens encaravam como relativamente normais. Como podia uma pessoa acordar transformada em inseto, e os familiares simplesmente isolarem o metamorfoseado, nutrindo certo rancor por ele – encarado como se estivesse, de propósito, tentando envergonhá-los perante o resto do mundo? Havia mais coisa ali… Pareceu-me a metáfora de algo maior, mais instigante justamente porque aberta a várias interpretações. Virei fã do autor.

Ainda no colégio, os alunos, cansados dos livros adotados pelo professor, resolveram pedir que escolhêssemos, mediante votação, a obra que queríamos ler. A ideia foi aceita. As pessoas propuseram alguns títulos. Sugeri A Metamorfose, mas eu mesmo acabei votando em outro, descrito como emocionante e cheio de ação e que acabou sendo o escolhido pela turma.

Comecei a ler o livro e não conseguia mais parar. Era ação e mais ação, além de bastante mistério. O primeiro capítulo acabou justamente num momento em que havia mais expectativa acerca do que aconteceria em seguida. Fui levado, pela curiosidade, a iniciar o capítulo seguinte, ao fim do qual ocorria a mesma coisa: a proximidade de algum acontecimento importante da trama me forçava a continuar lendo. E assim passavam-se dezenas e dezenas de páginas, fluindo como água, sem interrupção. Além do mistério, a presença de sensualidade na história também era instigante: uma fórmula perfeita para prender qualquer um àquela narrativa hiperdinâmica. Adorei cada minuto daquela leitura.

O tempo passou. Continuei procurando livros de Kafka e descobri o excelente O Processo, o qual reli algumas vezes. Da estante de minha casa, desentoquei um pequeno grande livro chamado O Estrangeiro (de um tal de Albert Camus, cujo nome eu não fazia ideia de como se pronunciava) – fiquei fascinado e também vim a relê-lo.  Daí não parei mais.

Já adulto, ao visitar minha mãe um dia, achei, em meu antigo armário, alguns pertences: cadernos, material escolar, fotos velhas. No meio de tudo aquilo, encontrei um livro que não era meu. Mas o estranho foi que, ao folheá-lo, encontrei meu nome escrito logo na página inicial (e reconheci que era minha própria letra!). Forcei a memória. Não me lembrava em absoluto do romance. Por que eu escrevera meu nome num livro de outra pessoa? Depois de vasculhar muito a memória, consegui recordar-me da votação na escola e do quanto aquela obra me fascinou na época, a ponto de eu não conseguir interromper a leitura. Porém, logo depois de lida, ela perdeu completamente a importância para mim. E eu jamais pensaria em relê-la: era algo descartável.

Fiquei pensativo. Fui fortalecendo na minha mente uma concepção que, já naquele momento, eu já passara a ter acerca da arte. A literatura de verdade não é aquilo que nos afaga, nos entretém e faz passar o tempo, mas sim o que mexe conosco, incomoda e marca nossa vida.

Lendo o romance Germinal, de Emile Zola, por exemplo, tenho necessidade de fazer pausas para respirar, pois o ambiente das minas de carvão em que os personagens se metem é asfixiante (nada muito diferente da atmosfera viciada das repartições burocráticas kafkianas). O romance A Pele, de Curzio Malaparte, também exige um ritmo mais ameno de leitura, pelos cenários sórdidos e opressivos que apresenta. Coisa semelhante também pode ser dita de A Peste, de Albert Camus. Nenhum desses é um livro de agradável fruição imediata, nenhum deles é passatempo. Eles não matam nosso tempo, mas tornam-no mais vivo, valioso, significativo, rico, importante para nossos tempos vindouros.

Isso não quer dizer que toda boa literatura tem que ser asfixiante. Ela pode ser qualquer coisa, não há barreiras para a arte. A Tragédia Brasileira, de Sérgio Sant’Anna, por exemplo, é engraçadíssima e não deixa de ser marcante por isso.  Os livros infantis de Ruth Rocha, também, são leves, mas mudam para sempre a existência das pessoas. Nunca mais me esqueci de Marcelo, Marmelo, Martelo, e seus questionamentos da linguagem feitos de maneira natural, direta, porém profunda. A obra trata da arbitrariedade do signo linguístico e das estranhezas idiomáticas sem falar difícil nem criar tramas mirabolantes, sem ações intermináveis que prendam o jovem sem nada acrescentarem à vida dele. Da mesma escritora, recordo-me com muito gosto do excelente Dois Idiotas Sentados Cada Qual No Seu Barril, livro que me fez entender (já na infância!) o que era, na essência, a tal da “guerra fria”. Mais do que isso, o livrinho me fez vislumbrar o absurdo das sociedades humanas ditas civilizadas, num prenúncio do que Kafka significaria para mim muito mais tarde.

Fico extremamente feliz quando um livro vende muito. É uma pena que a maior parte das pessoas desperdice com bugigangas que pouco representam para nós. Ruth Rocha criticou em entrevista: “Vejo muita gente comprar um celular para a criança, que custa cerca de mil reais, mas nunca vi um pai gastar mil reais em livros”. É verdade. Porém, mais importante que livros sejam comprados, é que sejam lidos (e relidos), acrescentando algo a nossas vidas.

Quando chega a notícia de uma bienal de livros bater recorde de público, não há como não nos alegrarmos. Ver uma feira literária (como a FLIP) atrair gente de todo o Brasil – e do mundo – é igualmente motivo de alegria. Recordes de venda de títulos literários também são dignos de comemoração.

Querer uma literatura para poucos “intelectuais” é um elitismo, para mim inaceitável. Por isso fico feliz com altas vendagens de livros, em geral. Porém quando um autor recorre a uma fórmula para alcançar esse sucesso comercial a todo custo, trabalhando seu texto apenas para prender a atenção no momento da leitura, sem nada além disso, sou levado a pensar que o leitor está sendo privado do que há de mais rico na literatura. Essa riqueza, aliás, pode ser alcançada sem que se precise gastar nem um décimo dos “mil reais” citados por Ruth Rocha.

Agora mesmo em 2015 comprei – na rua – excelentes livros usados por R$4,00, R$ 2,00 e até por R$1,00 (isso mesmo, um real!), além de ter obtido alguns gratuitamente em projetos como a Biblioteca Livre, que fica na estação das barcas da Praça XV (Centro do Rio de Janeiro), bem na área de embarque para Charitas.

Agora, é claro que se a pessoa estiver preocupada apenas em fazer pose de leitor moderno, comprando só livros comerciais (e vazios), que acabaram de ser lançados, vai mesmo ter que gastar à beça: desperdiçar dinheiro e – o pior – matar  o  tempo.

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