O poema solta a língua e fura a linguagem com suas quebras, elipses, piruetas proporcionando melhor acesso a essa voz que vem do longínquo, do além do princípio de prazer. Este trabalho percorre a obra de Maurice Blanchot (1907- 2003)
A linguagem é a melhor ferramenta que dispomos para nos expressar. Assim definida parece tão simples que melhor seria interpretar a linguagem como o meio que nos permite ousar, brincar com as palavras, dizer tudo ou nada dizer. Mas a linguagem não deixa de sofrer as influências dos freios que impomos a nós mesmos, escravizando as palavras. Assim, o pensamento extremo tem na literatura sua expressão máxima e libertadora, ao ponto da palavra ter vida própria.
“A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala ‘se fala’ (…) Blanchot em O Espaço Literário.
Maurice Blanchot, escritor, filósofo e crítico francês nasceu em setembro de 1907 em Quain, na região do Saône-et-Loire, e faleceu em fevereiro de 2003. Passou a vida em busca da essência da literatura e suas teorias sobre a relação entre o escritor, língua, literatura e filosofia influenciaram uma geração de pensadores pós-modernos e pós-estruturalistas, como Barthes, Foucault, Deleuze, Derrida. No decorrer de sua vida, Blanchot teria sido uma figura enigmática que procurava aparecer o menos possível. Durante a juventude abraçou as convicções monárquicas e tornou-se grande admirador de Paul Valéry. Ao graduar-se em Filosofia pela Universidade de Estrasburgo, rumou para Paris, onde, a partir do início da década de 30, passou a colaborar com vários periódicos de extrema direita. Em seus mais de duzentos artigos publicados é possível notar, por exemplo, o feroz ataque à Léon Blum, líder político socialista francês que ocupou o cargo de primeiro-ministro da França. Porém, com o fim da Segunda Guerra Mundial, abandonou suas convicções políticas anteriores, partiu para uma localidade remota no sul da França e passou de defensor a adversário implacável da direita.
Dominique Fingermann, em seu ensaio A voz do poema: Ecos de Maurice Blanchot, resume sobre o pensamento do escritor:
“A voz do poema aparece nas suas intermitências, presentifica-se como hiato, insurreição, impertinência. O poema é paradigmático do que a litter-ratura (litter rasura) faz acontecer, o risco da letra: o poema solta a língua e fura a linguagem com suas quebras, elipses, piruetas proporcionando melhor acesso a essa voz que vem do longínquo, do além do princípio de prazer. Este trabalho percorre a obra de Maurice Blanchot (1907- 2003), ‘…romancista e crítico. Sua vida é inteiramente dedicada à literatura e ao silêncio que lhe é próprio’, com o intuito de extrair o que da voz faz poema. A voz, o sopro e suas modulações, suporte e transmite o corpoema que cada um é, por princípio, para começo de qualquer conversa. ‘Perguntem aos poetas!’ sugeria Freud ao concluir a sua conferência sobre a feminilidade. ‘Eu sou poema’ lança Lacan, indicando assim o caminho do fim de análise que, por incrível que pareça, se encontra nos meios: mas por isso é preciso topar e sacá-lo dos ditos reduzidos ao ‘poema que faz o dizer menos besta’.”
Para Blanchot, o texto literário se encontra em um intervalo entre sonho e realidade, entre as palavras e as coisas, entre significados e significantes. Esse sentido do estranhamento, de estar fora do mundo para falar do mundo, do morrer sem estar morto. A palavra poética em prosa ou verso é a linguagem do pensamento sem amarras, e o desejo de quem a escreve é ouvir o inaudível e olhar o interminável. É por exemplo como a voz poética de Samuel Wood:
“De uma ave escondida na ramagem
Gostaríamos de aprender o delicioso canto
Bem como o apelo pungente dos lobos em coro
Em vez de gritar com uma garganta tão oca
Inapta para produzir essa música nativa
Que inspiram aos animais a alegria e a fome.
Sem ter a pretensão de igualar suas proezas vocais
Não corrompidas pelo desejo de audiência
Que faz do homem uma criatura tão vã
Como é que se há-de cantar num registro menos pobre?
Não teremos tido outros apetrechos além das palavras
A quem o pedir mais do que aquilo que sabem fazer
Nos leva a desesperar do seu uso
Mas continuam a ser nossas senhoras em todas as coisas
Uma vez que é preciso passar por elas para nos calarmos
Que o processá-las seria perder o nosso processo
E que a tanto ódio se alia a devoção (…)”
Segundo Blanchot, a voz do poema precisa ser ouvida antes de acreditarmos compreendê-la. Nos textos literários, a ressonância poética possa talvez ser comparada às notas musicais, com ritmo, cadência e melodia, para ouvir com ouvidos musicais.
“Quero tentar me expressar sob alguma forma de existência ou de arte, tão livremente e tão completamente quanto for possível, usando para me defender apenas armas que eu me autorizo a utilizar: o silêncio, o exílio, astúcia.” Assim falava Stephen Dedalus para seu amigo Cranly, em O Retrato do Artista quando Jovem de James Joyce (1916), citado por Maurice Blanchot no texto O primeiro romance de Joyce, publicado em 1944 no Journal des Débats.
E Blanchot, evidentemente, se completa em Nietzsche:
“O homem só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra.”