A nostalgia da juventude
A tônica de Meia-Noite e Vinte (Cia das Letras, 2016), de Daniel Galera, é a volta ao passado. Amigos de um antigo grupo de e-zine que fez muito sucesso no fim dos anos 90 reúnem-se a partir da morte brutal de um deles, o único inclusive que prosseguiu na carreira literária, Andrei (curiosamente, quase o anagrama de Daniel, “Danier”). Os demais continuaram em profissões relacionadas, jornalismo, publicidade e carreira universitária, e, a partir do mesmo marco, cada um deles em cada capítulo irá narrar o dia do assassinato do escritor e os acontecimentos dos dias seguintes, plasmados de memórias dos tempos de juventude.
Aurora, doutoranda em Química, está com problemas quanto a seu exame de qualificação e, para esquecer a ansiedade, volta a livros da infância e sente o prazer de tentar ser a mesma menina que buscava animais misteriosos e fantásticos no mundo a partir de livros coloridos. Vê como drama o enfrentamento do mundo adulto, onde pessoas trapaceiam e burlam regras, mas nunca ela mesma. Já o publicitário, Antero, se tornou um típico homem bem-sucedido de classe média, com uma família e ótimo salário, mas cultua seu passado sem barriga e de cabelos longos, pretos e conquistas de garotas. Acreditava-se mais sofisticado, um leitor de Sade fidedigno, não apenas para vender produtos. Há uma melancolia típica de quem dá com uma mão o que tira com a outra: quer esse “eu místico” da juventude, mas sem perder nenhuma regalia do presente. E por fim o jornalista, Emiliano, ranzinza, jornalista instável, sempre precisando do próximo frila, e que será o único convidado a voltar ao passado ganhando para tal, ao ser contratado para escrever a biografia do escritor e amigo morto.
Todos ali querem retornam à juventude, orbitam no fato de terem sido jovens brilhantes e agora serem adultos perdidos. A esperança da excepcionalidade e da mudança assume um ar de décadence, porque afinal cada um a seu modo descobriu-se mais um entre tantos e sem mais aquele frescor. Apegam-se pois ao fio que os liga ao passado e cultuam aquele que morre jovem. É a obediência séria ao que era para ser uma ironia em Oscar Wilde: “Viva depressa, morra jovem e seja um cadáver atraente”. Do contrário, será preciso envelhecer, encarar a grande máquina e ver e ser o trapaceiro, ou o marido fiel, ou o profissional de êxito comercial, ou o andarilho, ou o mercenário, e ter um corpo que se transforma.
Não se assume o novo momento: são jovens velhos, em vez de pessoas com a renovada idade. Assim nem mesmo a realização lhes parece boa, talvez traia o ideal dos primeiros anos, quando qualquer realidade trai um ideal. Tudo se torna o que não é mais, remetendo-se sempre ao que já foi. Há uma infelicidade deslocada tal qual a expressa Byron, nos idos do século XIX: “Não há alegria que o mundo possa te dar comparável à que ele tira de ti, quando o brilho das primeiras ideias degenera na nossa decadência dos sentimentos”.
Ser um “adulto” não significa aceitar o mundo tal como ele é e ser capaz de aceitar chefes ruins, como querem incutir as propagandas de coach. Contudo, passa por tomar a finitude e a individualidade como uma ante a todas as outras, capazes de escolhas e de participações, “sem mistificações, a vida apenas”. Para os personagens do romance, nem lhes aparece que, em vez de uma individualidade excepcional, eles pudessem avançar em uma coletividade ativa. Quando participam das manifestações de Junho de 2013, seguem com um apelo à juventude; Antero mesmo aproveita para paquerar estudantes e se caricaturar de black block, divertindo-e com a ideia de que o “grande publicitário” que ele se tem em conta está anônimo e capaz de apedrejar a loja do pai. Um fato é: um grande amigo de cada um deles é assassinado e nenhum torna isto um objeto público, um apelo de ordem; parece que faz parte mesmo desse mundo nauseabundo, com repugnâncias e escatologias do calor de Porto Alegre.
Se o fundo das coisas tem o visgo das raízes de A Naúsea, de Sartre, o calor e a ausência de sentidos lembram O Estrangeiro, obra de referência para este e outros romances de Galera. Não há aqui a apatia de Mersault que existe em Até o dia em que o cão morreu, nem o arquétipo do condenado que aparece em Barba ensopada de sangue, mas permeia a máxima de que a vida é um absurdo, como a própria personagem doutoranda lembra ao escrever uma homenagem ao amigo e citar O mito de Sísifo. Mesmo ao final do livro, Galera se vê no problema de Camus e imagina que é preciso imaginar Sísifo feliz, sem ter dado razões para isso, quando flertou com uma negatividade do mundo em seu percurso.
Talvez seja preciso seguir o caminho de pensamento do próprio pensador escolhido, para não cair em um apocalipse, como queria Andrei em seu romance inacabado. Se não há uma essência de fundamento para ser o que se é, dentro de um universo de absurdo, nem se cairá de um lado ao suicídio, nem de outro, ao crime; existe uma força ativa capaz de erguermos nós um mundo. E os personagens de Meia Noite e Vinte, pelo contrário, sofrem de uma passividade de que só Emiliano conseguiu erguer-se um tanto ao final e Aurora tentou, mas sem livrar-se de um misticismo de proteção materna.
Camus seguiu com O Homem Revoltado, quem sabe uma possibilidade para Galera avançar em relação ao impasse ainda de Barba ensopada de sangue e, em vez de retornar a Byron, atacado pelo autor argelino em sua ideia de revolta, tornar ainda o seu existencialismo um humanismo. Dar mais consistência coletiva ao desamparo individual.