A memória seletiva de Pôncio Pilatos

0

Sobre O Procurador da Judeia, excelente conto do esquecido ganhador do Nobel de Literatura, Anatole France

france
Anatole France, escritor laureado com o Nobel de Literatura de 1921 pelo conjunto de sua obra

O escritor francês Anatole France (1844-1924) publicou o conto O Procurador da Judeia em 25 de dezembro de 1891, quase trinta anos antes de ser premiado com o Nobel de Literatura. Eu o li ainda na adolescência e o reli ano passado para buscar referência para o meu conto: Eu Deveria ter Morrido em Waterloo, publicado em janeiro deste ano aqui no Homo Literatus.

Ao ler o conto de France podemos refletir sobre história, memória e acompanhar um ponto vista de vista diferente de uma importante figura histórica. É um conto curto e que quando o reli pude finalmente entender algumas de suas entrelinhas e outras particularidades que não pude compreender na adolescência.

É a história de Élio Lamia, que com a idade avançada, foi curar-se de um resfriado persistente numa região famosa por suas águas com propriedades curativas e lá encontra um amigo que não tinha mais a esperança de rever:

“[…] um velho muito corpulento que de testa apoiada na mão, fitava em volta com um olhar orgulhoso e sombrio. O seu nariz aquilino descaía para cima dos lábios que esmagavam um queixo proeminente e as poderosas maxilas.”

Era Pôncio Pilatos e estava lá por recomendação médica para aliviar as dores da gota. Desconstrói-se aí a imagem de um Pilatos forte e poderoso, da autoridade romana que teve o poder de permitir a crucificação do filho de Deus. Pilatos de início não reconhece o amigo, mas logo se inicia uma conversa sobre o tempo em que foi procurador da Judeia na província da Síria e a memória de Pilatos se revela intacta. Relembra os pormenores de cada situação mencionada. Instigado pelo amigo Lamia, ele recorda os detalhes da revolta dos samaritanos que teve que enfrentar e ainda diz ao amigo todo o desenrolar dessa guerra que o fez cair no meio das intrigas entre os chefes das províncias de Roma e que culminou no seu exílio voluntário. Fala-se sobre tudo, das humilhações, dos projetos públicos que tentou tirar do papel, mas o que mais lhe atormenta são os judeus.

Nessa parte do conto, é possível notar uma raiz do antissemitismo e da possível visão preconceituosa que se tinha dos judeus desde aquela época. Pilatos diz o pensa dos judeus:

“[…] inimigos do gênero humano. Orgulhosos e vis ao mesmo tempo, unindo uma ignominiosa cobardia a uma invencível obstinação, eles tanto aborrecem o amor como o ódio.”

A conversa sobre os judeus se estende e menciona uma mulher que parece ser Maria Madalena. Logo, Lamia pergunta ao amigo se ele se lembra de um líder revolucionário chamado Jesus, um galileu, natural de Nazaré, que ele condenou e que foi crucificado por um crime qualquer. Será que Pilatos, com uma memória excelente, que se lembrava de eventos até banais e que hoje estão no mais completo esquecimento, conseguia se lembrar do acontecimento que fez seu nome ser eternizado na história e ser repetido diariamente pela boca de cristãos em todo o mundo ao rezar o Credo? Ou a alma roída pelo remorso de uma condenação injusta preferiu esquecer apenas essa parte da história, para que doesse menos nos minutos antes de adormecer todas as noites?

O conto é pequeno e agradável, eu recomendo a leitura, nem que seja para saber se Pilatos se lembra ou não de Jesus.

Não há posts para exibir