Memorial do Convento é a consagração de uma das mais impactantes relações de amor
Há livros que se destacam pelo conjunto da trama e também aqueles em que os personagens acabam se sobrepondo à própria história. Memorial do Convento é tudo isso ao mesmo tempo e mais ainda a apresentação do casal merecedor de estar no mesmo panteão em que habitam Romeu e Julieta, Elizabeth e Darcy, Dom Quixote e Dulcineia, Lancelote e Guinevere, Tristão e Isolda e outros símbolos de relações inesquecíveis.
A obra foi publicada em 1982 e, a partir dela, José Saramago, como bom português que se embrenha em mares nunca dantes navegados, conquista reconhecimento para além de suas fronteiras, alavancando a carreira internacional cujo sucesso é tempos depois coroado com o Nobel. Nesse livro, as estruturas que alicerçaram a literatura de Saramago já estão bem firmes: o narrador reflexivo, o sarcasmo, a contestação aos dogmas da igreja, as cenas da brutalidade humana. E, para além disso, lá estão eles: Blimunda e Baltasar Sete-Sóis.
Pra começar, a descrição de cada um deles provoca impressões marcantes, são figuras que povoarão nosso imaginário até depois de termos concluído toda a leitura. Assim, Baltazar tem “desafrontada aparência”, carrega “desparelhadas vestes”, é maneta da mão esquerda, em função de ela ter sido estraçalhada por uma bala durante a guerra, e é por isso que um “gancho de ferro lhe faz as vezes da mão”. E Blimunda tem “olhos como estes nunca se viram, claros de cinzentos, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra”, é dona de habilidades misteriosas e os cabelos são pesados, espessos, cor de mel sombrio.
Quando Baltasar é atingido pelos primeiros olhares de Blimunda, alguma coisa lhe remexe a boca do estômago. Pronto, é sinal de que não querem se desgrudar mais. Depois de se conhecerem, Blimunda e Baltasar Sete-Sóis constroem cumplicidade, lealdade, vivem juntos o que só os dois podem viver, dividem segredos e compartilham experiências que todo o resto nem sequer imagina poderem existir. E, claro, desejam-se muito, e sempre dão jeito de desafogar o desejo da maneira que bem lhes convir.
Façamos um paralelo com a relação entre rei e rainha. O que se tem como prioridade deles é sempre procriar descendentes herdeiros. Nesse aspecto, as duas passagens a seguir explicam bem a diferença entre uma e outra vivências íntimas:
[o rei] duas vezes por semana cumpre vigorosamente o seu dever real e conjugal, nem a paciência e humildade da rainha que, a mais das preces, se sacrifica a uma imobilidade total depois de retirar-se de si e da cama o esposo, para que se não perturbem em seu gerativo acomodamento os líquidos comuns, escassos os seus por falta de estímulo e tempo, e cristianíssima retenção moral, pródigos os do soberano, como se espera de um homem que ainda não fez vinte e dois anos, nem isto nem aquilo fizeram inchar até hoje a barriga de D. Maria Ana.
Ali se deitaram, numa cama de folhagem, servindo as próprias roupas de abrigo e enxerga. Em profunda escuridão se procuram, nus, sôfrego entrou ele nela, ela o recebeu ansiosa, depois a sofreguidão dela, a ânsia dele, enfim os corpos encontrados, os movimentos, a voz que vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o grito nascido, prolongado, interrompido, o soluço seco, a lágrima inesperada, e a máquina a tremer, a vibrar, porventura já não está na terra, rasgou a cortina de silvas e enleios, pairou na alta noite, entre as nuvens, Blimunda, Baltasar, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos pesam sobre a terra, afinal estão aqui, foram e voltaram.
Bem se vê que Blimunda e Baltasar Sete-Sóis, pobres, execrados, pequenos, juntos por concubinato, são bem-sucedidos em conhecer o amor que os faz quererem misturar-se como um só, o que, certamente, passa longe do que ocorre com os representantes da nobreza, casados sob a égide das leis, elevados ao topo da hierarquia, talvez tão alto que ao amor não interesse subir até lá.
Memorial do Convento é a consagração de uma das mais impactantes relações de amor que se tem visto guardadas entre letras e páginas. E, quando se chega ao fim da história, não há jeito de escapar da comoção que aperta o peito. Sim, porque, com o perdão do clichê, comovente é toda relação de genuíno amor. O amor de Blimunda e Baltazar Sete-Sóis é de um tamanho avantajado que não cabe no mundo em que pisam.