Metonímia: a sociedade distópica em Mildred de Fahrenheit 451

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Aparentemente superficial, Midred se mostra uma peça importante para entendermos Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

Fahrenheit-451Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, firma-se ao longo dos anos como uma distopia clássica, retratando uma provável corrupção da cultura em uma sociedade ocidental futura. Lançado após o término da 2ª Guerra Mundial, em 1953, o romance esboça um mundo onde a cultura reinante é a não-reflexão e o inebriamento da atenção e dos sentidos, cultura essa da qual a própria sociedade, não só o Estado, detém a culpa. Nele, o indivíduo não tem chances à reflexão, e até mesmo o ato de parar e observar ao redor é, aos poucos, eliminado.

Bradbury constrói a trama ao redor de Guy Montag, um dos bombeiros cuja profissão, paradoxalmente, tem por ofício a incineração de livros, considerados uma ameaça à paz. No entanto, Montag tem a curiosidade instigada por sua vizinha Clarisse, uma menina um tanto singular ao restante, e desenvolve ao longo da trama um incrível fluxo de questionamento, que leva ao chão todas as certezas que fundamentavam seu estilo de vida irreflexivo.

Em distopias como esta, um dos maiores erros do leitor é a arrogância: instalado com o livro à mão, passando os olhos pelas páginas e tendo a chance tirada do mundo de Montag de ler e refletir, é muito fácil interpretar a sociedade de Fahrenheit 451 de um plano intelectualmente superior, distante da realidade proposta pelo romance. Porém, Bradbury oferece a desculpa perfeita para o leitor descer à Terra e olhar de outro modo sua sociedade ficcional “não-tão-ficcional”, com um olhar mais humano. E essa desculpa é Mildred, esposa do protagonista.

Superficialmente, Mildred parece estar ali ao lado de Montag apenas para que consigamos identificar, diálogo após diálogo, as digressões reflexivas do protagonista e seu progresso em meio a uma mente, antes emudecida, gradualmente pensante e mais humana. Mildred, sob este aspecto, funciona como um paralelo. Está ali para mostrar a alienação da qual Montag antes fazia parte, seu ponto de partida.

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Mildred (Linda), na adaptação de Fahrenheit 451 para o cinema, por François Truffaut

Todavia, o papel coadjuvante de Mildred no romance pode deixar de serencarado como simples paralelismo para se firmar mais essencial: como um ponto de identificação do leitor com a realidade nele descrita.  Mildred é a personificação da sociedade alienada e reprimida de Bradbury. Pois, diferente de distopias como 1984, de George Orwell, na qual os questionamentos e o caráter destoante de Winston se constroem em meio ao ambiente externo, nas ruas, em convívio e contato direto com as pessoas, em Fahrenheit 451 Montag se constrói no interior de sua casa, ao lado de Mildred, e é por meio dela que percebemos o mundo no qual estão envoltos.

Pela preocupação e pelo afeto de Montag, conseguimos enxergar a fragilidade e a humanidade de Mildred, ao invés de encará-la como um simples joguete do sistema. E é ao conseguir fazer o leitor enxergar a humanidade sob a alienação e o vazio de Mildred que Bradbury consegue, consequentemente, fazer com que o leitor enxergue a humanidade de sua sociedade. O leitor, igualmente humano, identifica-se e então toma um lugar em meio a repressão. E assim entende a importância dos planos de Montag, e seu desejo em combatê-la e obter respostas, centro de todo o romance.

Mildred, sob lentes de aumento, não é vazia — ponto de identificação do leitor, dá ao livro a humanidade necessária a qualquer distopia.

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