Metonímia e metáfora

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Definamos (informalmente) a indireção de uma expressão como o número de saltos mentais necessários para que seja compreendida. Por sua natureza, figuras de linguagem oferecem-nos sempre alguns graus de indireção: nossos olhos precisam processar seus significados quando as encontram, pois não são literais. De que forma o homem é também tigre? E como pode beber da Morte? Essa manufatura das palavras, inesperada, coloca-nos diante de um pequeno quebra-cabeças. Foi Aristóteles quem chamou esses brinquedos de “enigmas que revelam similaridades.” São obstáculos ornamentais: “eu poderia ser literal” — explica um autor — “mas o literal cansa (e às vezes é horrendo). Então sejamos enigmáticos. Faça você o caminho de decifrar o que eu quis dizer.”

A metonímia e a metáfora, dentre todas as figuras de linguagem, talvez sejam aquelas que desfrutam de maior prestígio (a metáfora especialmente). Aristóteles não foi o primeiro a estudá-las, e enganou-se em milênios aquele que arriscou dizer que seria o último. Dedicaram-se a esses artifícios depois dele muitas outras cabeças. Contemporâneo de Nero, o romano Quintiliano as distribuiu às Eras: a metonímia ficava com a Era dos Deuses e com a Era dos Heróis; a Era dos Homens ficava com a metáfora só para ela. Já Giambattista Vico se ocupou não de sua história, mas de sua taxonomia: foi responsável por organizar e enxugar as muitas classificações desses tropos. E se embora no início desse longo caminho por onde não passam pés (só cabeças) pensava-se nesses dois recursos como floreios elaborados, chegou o tempo quando com Hobbes e Locke se pensou nesses truques como prestidigitação enganadora. Como algo mau. Mas elas são fortes: coisas feitas de material mole como as palavras recebem as críticas arremessadas e as arremessam de volta. Logo a desconfiança desses destratos foi minimizada. Decidiu-se que não só teriam sido o berço de toda linguagem (com Rousseau), como também que esses charlatanismos linguísticos formam uma belíssima sintaxe polarizada do inconsciente (com Lacan). E mais ainda: Rorty trouxe que eram as verdadeiras ferramentas de evolução da cultura; que em nossas tentativas aflitas de nos expressarmos como nunca antes, avançamos mais a cultura com a Poesia do que com a Razão.

Fica estabelecido, então: não buscamos em nossas vozes e em nossos textos ser mais claros. A clareza só é bonita no vidro, que é muito oco e deixa passar a luz completamente. Queremos ser raros. A linguagem é uma forma antes de individualização, depois de comunicação. E chega-se assim nos aspectos pessoais das figuras de linguagem.

Figuras de linguagem são poesia pois são nós mesmos. Carregam a nossa marca, são os nossos truques. Quando montamos uma metáfora verdadeira e inesperada, a sensação é a de encontrar um tesouro enterrado em nosso cabelo. Borges foi até certo ponto da vida um apaixonado da metáfora: estudou as kenning nórdicas com paixão, e sei que usou mais de uma vez tecido de homens para dizer guerra. Essa metáfora (entre outras) é Borges. É uma das muitas coisas que nos deixou.

A metáfora cria indireção através da similaridade: nela pareiam-se dois elementos distintos, que possuem, entretanto, algum tipo de semelhança. Baseia-se na capacidade humana de encontrar paralelos entre ideias distintas.

metafora

Recorramos à mais famosa:

“O amor é fogo”

Onde:

A = amor
B = fogo

A princípio, amor e fogo são diferentes elementos. Contudo, existe uma semelhança entre eles: ambos ardem (nesse caso, sem que se veja). Essa similaridade permite ao poeta aproximar essas duas palavras. Com isso, cabe o ao leitor trabalhar, oxidar essa indireção em sua mente, expandindo-a para encontrar o que A compartilha com B. Metáforas são aproximações por similaridades.

Já a metonímia o que impera é a contiguidade de dois conceitos. Deseja-se, na verdade, em vez de aproximar duas matérias distantes, sintetizar dois componentes adjacentes em um só substrato. Quer fazer de conceitos apenas vizinhos moradores da mesma casa.

metonimia

Por exemplo, na frase:

“Lemos Jakobson.”

Temos que

A = livro
B = Roman Jakobson
Jakobson = livro + Roman Jakobson (um livro de Roman Jakobson)

Podemos realizar essa contração dos termos pois existe uma proximidade entre livro e o linguista Roman Jakobson (pois Jakobson já escreveu um livro). Na metonímia superpomos elementos que estavam lado a lado em um só, criando uma indireção que nossa mente precisa destrinchar para que compreenda. A metonímia nos faz pensar: de que forma ler um livro de Jakobson é, também, ler o Jakobson (a pessoa)?

E assim se amansa a maquiagem de uma das faces da poesia: com um termo em itálico, indireção. Das similaridades e proximidades inesperadas revelamos o que não era visto e talvez causemos surpresa em nossos leitores. Figuras de linguagem são criadas da nossa capacidade de enxergar o mundo de forma particular. E onde nossos olhos enxergam torto ou mais longe: nos abrimos. Revelamos onde somos fortes e onde não; como se pela disposição estranha das tábuas das pontes que erguemos por necessidade, pudesse a posteridade lembrar nossos nomes quando passa sobre elas.

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