Miguel Sanches Neto e a hipótese de uma “Segunda Pátria”

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Miguel Sanches Neto fala de seu romance Segunda Pátria, sobre mercado editorial, entre outros

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Um homem abandona seu antigo plano: antes era se graduar engenheiro, mudar-se do Rio de Janeiro para o sul, de colonização alemã, e sentir-se mais próximo de suas raízes adotadas. Um plano simples, se não fossem dois fatores. Um deles é que Adolpho Ventura cuida de seu filho recém-nascido, e não há sinal algum de que voltará a ver a mãe dele, menos ainda de que um dia ela ficará ao seu lado. O segundo fator é o mote de Segunda Pátria, novo romance de Miguel Sanches Neto. O personagem Ventura topa com um pelotão militar em marcha ao sair de casa:

“Contemplou com atenção, uma atenção exagerada os soldados. E viu que vários deles o olhavam com ódio. Nunca antes sentira que sua figura despertasse tamanha repulsa, embora sempre incomodasse as pessoas por seu porte atlético, pelas roupas de qualidade e pela fluência de ideias expressas no melhor alemão.Como um negro pode ter essa postura?” (p.16)

O universo desta ficção é um Brasil que se aliou aos nazistas durante a segunda guerra mundial. Dividido em cinco partes, na ficção somos apresentados a personagens cujas vidas sentem o peso da aliança recém firmada entre Getúlio Vargas e Adolf Hitler, sendo o destino posterior daquele e um encontro muito particular deste grandes cenas do enredo.

A narração é dividida em cinco partes, ocorrendo entre 1938 a 1941, cada uma dedicada a um personagem e como sua vida foi alterada pelo nazismo. Uma das formas mais cruéis de agressão é justo uma das menos violentas fisicamente, na primeira parte, Neger 1940: é quando oficiais do exército entram na casa de Adolpho Ventura e tomam seus livros em favor da pátria (ou assim se justifica), sem direito a defesa. Em Wolfsschlucht 1938, nos é apresentada Hertha, uma mulher cuja vida se revela no vazio dos mundos que visita e se deixa visitar, tamanho o seu apetite desenfreado. Ou quase, pois a situação do país também se impõe sobre ela, mas de uma forma muito diferente em comparação aos demais personagens da trama, embora não menos cruel.

O mais que pode ser dito sobre Segunda Pátria é contado pelo próprio Miguel Sanches Neto, em um breve bate-papo com o Homo Literatus.

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Você comentou em um blog da editora Intrínseca que foi procurado por ela para escrever este romance. No processo criativo, há uma grande dose de pesquisa histórica, como trabalhou a relação dessa parte com a criação ficcional?

Acredito que todo livro de um escritor já literariamente formado amplia e, ao mesmo tempo, retoma as questões e as estratégias de suas obras anteriores. Assim, o fato de o livro ser encomendado não altera muita coisa, pois dentro dos limites da encomenda eu pude usar estruturas de linguagem e abordar temáticas que me são caras. Em um romance de escrita mais espontânea, escrevemos a partir de percepções acumuladas pela experiência vivida e pelas leituras ao acaso. Como se tratava de uma obra bem específica, tive que fazer as leituras voltadas para ela, intensificando o que, num outro projeto, aconteceria de maneira mais leve. Esta é a única diferença. Eu tive que buscar nos livros e documentos estímulos para construir o romance.

Além da temática, houve alguma outra orientação da editora?

Nenhuma outra orientação da editora. Eu recebi apenas um mote e toda a liberdade para moldar uma história que fosse a minha cara. Embora o tema seja novo para mim, o nazismo, eu vinha recebendo muita informação narrativa ao longo dos anos, acompanhando manifestações nazistas no sul do Brasil e me indignando com discursos que retomavam a questão racial para demonizar as minorias. Ou seja, nem mesmo o tema me era de fato distante. Eu apenas não havia ainda tratado dele de maneira ficcional.

Com alguma busca, encontram-se histórias de escritores hoje clássicos que foram remunerados por seus livros, em alguns casos até vivendo destas encomendas. Porém, a situação ainda parece pouco comum para a realidade do Brasil. Qual a sua visão disso?

Acho um avanço editorial. Quando uma editora contrata um autor para que ele produza uma obra de ficção, é sinal de que existe uma compreensão menos vesga da profissão do escritor. Na minha geração, e na minha classe social, não havia a perspectiva de assumir a escrita como profissão. Precisei arrumar uma maneira mais certa de ganhar a vida para manter a família – me casei muito cedo, aos 21 anos. Hoje, com todos os problemas de mercado que ainda temos, com uma presença muito grande da literatura estrangeira no cardápio de leituras do país, há a possibilidade real de um jovem escritor ser apenas escritor. Agora, independente de ter mercado, de conseguir editora, de ser ou não convidado, o verdadeiro escritor nunca para de escrever os livros que o seu corpo captou no confronto direto com a realidade ou no mediado pela leitura. Eu não preciso de convite para escrever. Escrevo todos os dias coisas que não têm a menor perspectiva de mercado, como haicais, diários e poemas.

A Segunda Pátria tem uma semelhança com dois de seus romances anteriores, Um Amor Anarquista e A Máquina de Madeira, pela mescla entre o ficcional e uma parcela da história do país. A Segunda Pátria foi um livro sob encomenda, mas e quanto aos outros dois mencionados? Como eles nasceram?

Do encontro espontâneo com temas que permitiam que eu dissesse alguma coisa com repercussão no contemporâneo. Um romance histórico, para mim, só vale se dialogar com o que estamos vivendo. Não pode ser mero entretenimento. Com Um amor anarquista, o que determinou a escrita foi um trabalho de edição das memórias familiares de um descendente de anarquistas (Cândido de Mello Neto). Durante o trabalho no livro dele, vi que era possível restaurar os dramas dos anarquistas que viveram entre o sonho e a realidade, entre a ideologia e a sobrevivência. Já em A Máquina de madeira, foi uma notícia que li sobre o inventor brasileiro que me despertou o desejo de escrever um livro que falasse de um país, o Brasil, em que as ideias não são priorizadas. Ao mesmo tempo, neste livro eu soletrava todo o meu amor pelo mundo mecânico da máquina de escrever, no qual me formei como escritor, antes do advento digital. O romance mostra o início de uma era da qual eu vivi os estertores.

Antes de A Segunda Pátria começar, há um lembrete: “Tudo não passa, portanto, de um pesadelo. Este é um dos papéis da literatura: fazer com que vivamos acordados os piores sonhos da humanidade”. Como se constrói esse passaporte para pesadelos por meio da literatura? Há planos para um novo pesadelo?

O artista é uma espécie de caixa de ressonância. Coisas pequenas, que passam muitas vezes despercebidas para a maioria, ferem profundamente este criador. Ao escrever, ele amplia estes eventos que o machucaram, une-os a outros, de tal forma que reorganiza o mundo a partir de uma ficção que não é fiel aos fatos porque os vê dentro de estruturas simbólicas. O bom leitor de literatura é aquele que lê eventos particulares para entender o todo. O Brasil nazista que criei é um pesadelo, mas que talvez aponte para a raiz de uma tendência preconceituosa. O novo romance em que trabalho é uma narrativa muito contemporânea, um romance policial em que o meu detetive (Professor Pessoa, de A Primeira Mulher) é contratado por um político corrupto que sonha ter a posse da bíblia em que Che Guevara teria feito anotações, em sua passagem por Curitiba em 1966. Um romance político, portanto.

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