Quando o assunto é literatura, você pode escrever e contar sobre o que quiser, basta saber como fazer isso com qualidade
Pode ser. Quer dizer, pode ser que você viva se perguntando isso. Conheço muita gente que se diz incapacitado de escrever qualquer coisa sem nem ao menos tentar porque não possui uma “vida interessante”, já que, na opinião dessas pessoas, para escrever é necessário ter uma vida fascinante, geralmente associada ao uso de drogas, álcool, amores desastrosos, noitadas dormindo na rua e, sei lá, ter se envolvido em uma guerra ou numa catástrofe continental. O que, claro, não é verdade. Não existe uma circunstância associada diretamente à qualidade literária. Basta ler um pouco sobre a história de alguns autores consagrados e encontrar contextos, experiências e interesses distintos (Borges, por exemplo, quase não saía de casa).
Depois que comecei a pensar nisso, a frase “não é o que você conta, mas como você conta” nunca me fez tanto sentido. Sempre suspeito que estas frases-clichês possuem erros de raciocínios escondidos em algum lugar da sua fórmula e que apenas convencem porque as ouvimos com insistência, mas não adianta. “Não é o que você conta, mas como você conta” me parece irrefutável. Prova disso foi o livro que terminei de ler esta semana: Formas de Voltar pra Casa, um romance do escritor chileno Alejandro Zambra.
Não existe nenhum acontecimento incrível nas narrativas do Zambra. Talvez porque somos condicionados pelos filmes hollywoodianos, músicas pop e jogos de videogames a este vício bobo: esperar o tempo todo que algo incrível tenha que acontecer, ou então o desprezo. Mas de qualquer forma – vale enfatizar -, esta é a verdade: nada de incrível acontece. A obra possui um tom autobiográfico, registrando memórias do autor. Apesar de ter como plano de fundo as lembranças da ditadura militar chilena, não há grandes reviravoltas, os cenários são quase sempre os mesmos, os diálogos são corriqueiros e os acontecimentos podem ser resumidos na relação do personagem principal com os pais e com um caso amoroso de infância que reencontra na juventude. O restante se origina a partir disso: o primeiro beijo, a experiência com o amor, a companhia do pai em frente à TV assistindo os jogos do Colo-Colo, a infância católica etc. etc. Baseado na experiência literária que tive com o continente, considero a narrativa do Zambra pouquíssima latino-americana, sempre tão fantástica, absurda, escrachada. Bem diferente do chileno, sempre polido, de expressões suaves e relatos casuais.
Apesar de tudo, o livro é extremamente instigante. Extremamente. Nada “grandioso” acontece, ok, mas o livro é bom pra caralho. Isso acontece porque o Zambra escreve bem demais, torna únicas suas histórias, e então você esquece que viu qualquer coisa parecida em qualquer outro livro e lê tudo como se fosse a primeira vez. A linguagem, os traços de personalidade atribuídos ao personagem, a experiência de ambientação proporcionada ao leitor, a habilidade com um diálogo verossímil e audível. Tudo isso numa escrita fluida, limpa e muito humana (a impressão é que o Zambra escreveu o livro para você, tamanha a intimidade que ele conquista com o leitor). O texto é maravilhoso. As histórias são simples, mas quem liga? O texto é maravilhoso. Portanto, o livro é maravilhoso. Porque o importante não é o que você conta, mas como você conta.
Selecionei dois trechos. Eles me ajudarão a ilustrar o argumento. E talvez provar que você consegue contar o que quiser, basta saber como.
“E a mulher, disse minha mãe, não tinha cara de professora de inglês – tinha cara de dona de casa, nada mais, acrescentou outro vizinho, e esticaram a piada por um tempo. Eu pensei na cara de uma professora de inglês, em como devia ser a cara de uma professora de inglês. Pensei em minha mãe, em meu pai. Pensei: meus pais tem cara de quê? Mas nossos pais nunca têm cara realmente. Nunca aprendemos a olhá-los bem.” (pág. 16)
“Nos encontramos numa tarde de novembro, no Starbucks de La Reina. Eu gostaria de me lembrar agora, com absoluta precisão, de cada uma de suas palavras e anotá-las neste caderno, sem maiores comentários. Gostaria de imitar sua voz, aproximar uma câmera dos gestos que fazia quando penetrava, sem medo, no passado. Gostaria que outra pessoa escrevesse esse livro, Que ela, por exemplo, o escrevesse. Que estivesse agora mesmo, na minha casa, escrevendo. Mas eu é que devo escrevê-lo e aqui estou. E aqui vou ficar.” (pág. 87)