A misteriosa geração de escritores que não querem ler

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A misteriosa geração de escritores que não querem ler

Muitos autores estreantes passam cada vez mais tempo escrevendo e publicando do que na exploração de um livro novo

Antes de continuar, é preciso esclarecer – a leitura literária não é obrigatória. Defende-se o direito de todo cidadão ter acesso a livros, sobretudo livros de qualidade. A partir daí, se a pessoa vai se transformar numa leitora ou não, é escolha dela. O hábito de ler não torna um indivíduo necessariamente mais sensível e desenvolto do que alguém que prefira outras coisas. Todavia, é de se pensar que a leitura literária seja obrigatória em duas ocasiões: quando você é um estudante/ profissional de Letras ou quando é escritor.

O primeiro caso é simples. Não faz sentido escolher uma carreira que trabalha com a Literatura sem gostar do contato com ela. No entanto, é impressionante a quantidade de pessoas que acreditam que podem escrever um romance (ou mesmo uma trilogia) sem sequer lerem quatro livros por ano.

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Se um estudante de Letras precisa ter certo entendimento de conceitos e recursos literários, o mesmo vale para o escritor. Ele trabalha com a criação de pequenos mundos, e precisa ser muito consciente durante esse processo.

É claro que não necessita de doutorado em Estudos Literários, mas o escritor deve ter o domínio do seu ofício: como construir o enredo, como imprimir ritmo à narrativa, como desenvolver os personagens, organizar o processo criativo. Sem falar dos quesitos mais básicos, entre eles coesão textual, ortografia e estilo do autor.

Acontece que a melhor maneira de se familiarizar com esses aspectos tão caros à escrita é justamente ler. E ler textos bem construídos, que tenham algo a ensinar em termos de “fazer literário”.

Como os maiores autores dos séculos XIX e XX escreviam tão bem, mesmo sem cursos de escrita criativa? Porque eles liam, trocavam material entre si, estavam sempre aprendendo a fazer Literatura com a própria Literatura. Ao perceber como um autor trabalha determinados aspectos da narrativa, o escritor pode levar esse know-how para sua própria produção.

Já que escrevo, é comum que eu leia a mesma página várias vezes, faça anotações, analise como a história se desenrola. A leitura não é apenas lazer ou uma atividade que me põe para pensar/sentir. Ela é também inspiração. Aprendizagem.

Mesmo que tudo isso pareça básico, uma piada circula entre os editores: “Se todo mundo que diz que quer ser escritor lesse o tanto que precisava para escrever, os problemas do mercado editorial brasileiro acabavam”. E é verdade.

Aposto que você conhece muita gente que sonha em ter um livro publicado, mas não seria surpresa se essas mesmas pessoas lessem muito pouco ou tivessem uma experiência literária um tanto limitada (ler um único gênero/autor, apenas narrativas previsíveis ou pouco trabalhadas, etc).

Não que o hábito da leitura necessariamente transforme alguém em escritor. É possível ser um ávido leitor sem ter vocação para a escrita criativa. Mas é impossível ser um bom escritor sem ler. Cria-se até um paradoxo: como o autor espera que as pessoas leiam e comprem seus livros se ele mesmo não lê nem fomenta o mercado pelo qual mais deveria se interessar? Como sabe que está sendo original, se não tem base para comparação?

É visível que muitos autores têm investido em cursos de “aprenda a consolidar uma carreira literária”. Isso é ótimo. O problema é que, quando você lê os textos da pessoa, eles são mal escritos, pouco desenvolvidos, repletos de clichês e até com erros de ortografia.

Do que adianta aprender a promover sua imagem e engajar leitores se o principal – ou seja, a produção literária do autor – é fraca? É até mais danoso, porque ele vai se divulgar por meio de textos ruins. Isso afasta não apenas leitores, mas também oportunidades.

Talvez essa situação venha da crença de que a escrita é um dom que, justamente por sê-lo, não deve ser estimulada além de si mesma. Algumas pessoas de fato possuem uma inclinação maior para a criação literária que, nas circunstâncias ideais, pode ser desenvolvida à excelência. Mas entre essas circunstâncias ideais estão o acesso a livros, a leitura crítica, o aprimoramento constante da própria escrita. E, acima de tudo, qualquer um tem a capacidade de escrever melhor do que já escreve.

Qual é a maior aliada desse processo? A leitura. De livros, quadrinhos, artigos, matérias e ensaios capazes de inspirar. Nesse universo das letras, uma coisa é certa: por trás de um único texto estão muitos e muitos livros. Antes de ser escritor, é preciso, sobretudo, ser leitor.

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Doutoranda e mestre em Comunicação pela UFF, sendo formada em Publicidade e Propaganda pela UFRJ. Atua como consultora acadêmica, escritora, revisora, copidesque e redatora publicitária. Autora do livro infantil "O Mirabolante Doutor Rocambole", finalista no Prêmio Off Flip de Literatura. Integra a coletânea "Contos de Encantar o Céu", que compõe o catálogo da 56ª Feira de Bolonha e o acervo básico da FNLIJ. Assina a peça "Entre Nuvens e Ladrilhos", montada pelo coletivo Paraíso Cênico. Sua pesquisa de mestrado sobre maternidade nas mídias sociais, vencedora do Prêmio Compós, em breve estará disponível em formato livro. Acabou criando um site para dividir textos, dicas, investigações e projetos no mesmo espaço.

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