Parece que essa moradia não quer olhar para ninguém

Assim que saio do portão de casa ela se põe na minha frente. Não aparece do nada como se fosse um vizinho ou um conhecido que apareceu do além, tampouco alguém que por acaso faça uma visita. Se fosse assim talvez seria menos bizarro, pois eu veria um rosto. Da forma como é e sempre foi, é uma construção sem face.
O sobrado – pelo menos imagino que seja isso – foi construído com as faces viradas para dentro da quadra, visíveis quando se olha a construção ao caminhar pela rua pela direita ou pela esquerda, mas ao vê-la de frente, como sempre a vejo, é um rosto liso. Nenhuma janela, porta ou indicação de que seja uma moradia, apenas muros espessos a protegendo da rua.
É um pouco desconfortável ver justo essa construção, principalmente ao perceber o que o lado do Guaíra onde moro há mais de uma década se tornou. Antes esse lado aqui do bairro lembrava um pouco uma cidade com um quê interiorano, dessas onde muitos se conhecem de vista e acenam com a mão ou a cabeça mesmo sem saberem os nomes uns dos outros, onde o dono da venda também conhece todo mundo de rosto e até mantém um caderno anotando as pendências de alguns que abrem contas a pagar no fim do mês. As ruas e calçadas em si sempre foram democráticas, dessas que nos dão o livre arbítrio de escolher em qual poça vamos nos molhar após uma chuva forte, em qual remendo de asfalto (nos raros que há) pisamos, e as casas eram menos vistosas e ostensivas em seus exteriores, não se impunham à distância nem faziam sombras grandes.
O terreno no qual construíram o dito cujo sem rosto que mencionei abrigou uma casa, na qual sua antiga dona adaptou um micro salão de cabelereiro em um espaço que poderia ter sido uma garagem ou o famoso quarto de juntar tralha que (quase) toda casa tem. A dona negociou o terreno e se mandou do Guaíra, nunca mais a vi e não me lembro de seu paradeiro; lembro apenas que bem antes da casa dela ser demolida e começarem a erguer as paredes da nova moradia a casa dela tinha a face virada à rua.
Meses de leva-e-traz de material de construção, estava pronta. Contornos retos e mais precisos que um desenho em uma prancheta, o que um dia foi rascunho ganhou tijolos e cores. E por alguma razão resolveram – sei lá quem, construtora e demais responsáveis pela obra – deixá-la com a frente para o lado de dentro do bloco. É estranho demais, parece que uma parte da rua que me permito chamar de minha não quer olhar para ninguém. Esse lado do Guaíra mudou bastante nos últimos anos, mas não a ponto de ficar irreconhecível como se fosse um bairro diferente e até oposto àquele de uma década e meia atrás, quando minha mãe e eu viemos morar por aqui.
Em um palpite bem grosseiro, conserva metade de suas características anteriores, e nem precisa caminhar tanto por aqui para ver o quanto cresceu. Saindo à direita de onde moro em direção à área mais agitada e comercial do Guaíra, antes de atravessar a fronteira invisível que o divide de bairros vizinhos, veem-se mais casas e sobrados recentes com menos de uma década de vida, às vezes com seus donos ou inquilinos prestes a sair para fazer qualquer coisa fora de casa. Assim como suas moradias, seus rostos são visíveis – ao contrário da construção sem rosto virado para a rua, cuja explicação parece um mistério insondável.