Morreu a rainha, Senhor

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A frase “Morreu a Rainha, Senhor” implica toda a ironia possível da tragédia de Macbeth, de William Shakespeare

Ilustração para Macbeth
Ilustração para Macbeth

“Deveria ter morrido mais tarde. Haveria, então, lugar para uma tal palavra!… O amanhã, o amanhã, o amanhã, avança em passos mesquinhos, dia a dia até a última sílaba do tempo que se recorda, e todos os nossos ontens iluminaram para os loucos o caminho da poeira da morte. Apaga-te, apaga-te, vela fugaz! A vida não nada mais é do que uma sombra que passa, um pobre louco que se pavoneia e se agita por uma hora no palco em cena e, depois, nada mais se ouve. É um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada.” (trecho do Ato V, fala de Macbeth ao saber da notícia da morte de Lady Macbeth)

Resistência ao tempo, eco, reverberação, reinvenção, releitura, a capacidade de preservação das camadas mais profundas do texto, fazem de uma obra uma arte. Há quatrocentos anos morria William Shakespeare, escritor que foi capaz de me intoxicar com suas tramas assustadoramente contemporâneas e me levar para fora de casa na minha tentativa de tocar a Geografia e a História.

As celebrações por aqui no Reino Unido, já começam a tomar forma. O ápice acontece em abril, em Stratford-upon-Avon, cidade natal do autor. A Royal Shakespeare Company, sempre irretocável, já anuncia sua agenda com comédias, tragédias e sonetos para todos os gostos e idades. Claro, Shakespeare por aqui é coisa séria e por isso mesmo, é introduzido desde cedo nas escolas. Mas a popularização de um clássico se dá com a inteligente maneira de transformá-lo. Fazer de um clássico uma ferramenta disponível e democrática, ao invés de usá-lo como divisor de classes e capacidade intelectual. (Algo que soa tão esnobe quanto de fato é.) Pouquíssimas pessoas leem Shakespeare no original. E o que há de errado nisso? Nada, ao meu ver. O que se tira de Shakespeare é muito, muito mais do que uma discussão sobre métrica, teoria e linguística. Suas obras falam de nós, afinal de contas. Suas incontáveis adaptações para cinema, TV, quadrinhos, teatro, música são o pulso, o coração em pleno funcionamento dessa coleção de obras vivas. Não faz muito tempo, li com a minha filha de sete anos, Sonho de uma noite de verão. Rimos das ilusões criadas pela ideia do amor inventado. Rimos da cegueira da paixão. Rimos do que é feio, mas lindo aos olhos de quem o ama. Rimos do ridículo e maravilhoso que é se apaixonar e se apaixonar de novo. Daqui a alguns anos, ela vai ler o mesmo livro de uma forma mais próxima da experiência da paixão. E veja bem aqui, diante dos nossos olhos, o triunfo de William Shakespeare: sua obra será sempre equivalente a nós mesmos e por isso, infinita, enorme.

Não estou em má companhia quando afirmo a relevância infinita de Shakespeare. O escritor Ben Johnson, amigo do dramaturgo, disse a famosa frase que “Shakespeare não era para uma era, mas sim para todo o tempo.”

Na Faculdade de Letras da UFRJ, onde me formei, fui introduzida aos trabalhos do Bardo. Fisgaram-me os sonetos e Macbeth. Gosto de quase toda a sua produção, tendo menos entusiamos por algumas das peças históricas.

Levando a sério a recomendação de Ben Johnson, faço frequentemente a releitura de Macbeth, sendo o próprio menos interessante que alguns dos outros personagens da tragédia. Macbeth, pra mim, é a história de uma mulher. É a narrativa dramática, escura, sangrenta da manipulação afiada, podre e ambiciosa atrás do poder. Que personagem é mais repugnante, diabólica, complexa e inteligente que Lady Macbeth? É ela quem identifica na personalidade vaidosa e tola do marido, o espaço e o tempo perfeitos para o seu grande golpe. Lady Macbeth usa a hesitação e a fraqueza de personalidade do marido, quando ele reflete sobre índole, ultrapassando qualquer limite moral para ver executado seu plano de se tornar rainha da Escócia. O debate de Macbeth é mais previsível. O nobre escocês que sonha em ser rei, se desequilibra entre o bem e o mal. No Ato 1, cena 7, Macbeth pondera sobre o assassinato que pode cometer. Na mesma cena, ele se convence da própria índole, recusando qualquer possibilidade macabra. Mas sua convicção dura o tempo da chegada de Lady Macbeth. É ela quem surpreende toda a tragédia. É ela quem movimenta o enredo. É ela quem utiliza a arma mais sofisticada e dissimulada para a execução do plano mais sujo: a palavra. Lady Macbeth tem incrível poder de persuasão e a partir daí, ela chega ao ponto de convencer Macbeth que livrar-se de afetos é possível sem um pingo de remorso.

A representação da mulher nessa tragédia é de grande debate. Em Macbeth, as personagens femininas são diabólicas, dissimuladas. As bruxas são três velhas que falam suas profecias. Novamente, o homem perdido em ambição e em busca do amparo da fé para a execução de desvalores, acredita na conveniência das premonições.

Lady Macbeth calcula cada argumento cruelmente gerado para justificar o ato que ela mesmo não quer cometer, deixando que o marido faça as honras. Ao planejar a morte de Duncan, Lady Macbeth cobra de Macbeth uma postura de “homem” que não permite fracassos ou hesitação diante do ato criminoso.

Quando Seyton anuncia a morte de Lady Macbeth e diz solenemente: “Morreu a Rainha, Senhor.”, implica toda a ironia possível desta tragédia. Cada gota de sangue grosso derramado pelo poder só para morrer, enfim e ao menos, rainha.

Shakespeare explora toda a nossa capacidade de ser imorais, mesmo na ponderação, na reflexão da consequência dos meios justificarem os fins. O deslanchamento do banho de sangue na tragédia de Macbeth é previsível, é esperado. Por que ainda assim, nos rendemos ao espetáculo repetidamente? Porque nos assistimos! Fazemos de Macbeth uma metáfora e aplicamos de segunda a segunda em qualquer tragédia que é viver. A maldade pura de Lady Macbeth, seus esconderijos em palavras, convicções e delírios são as desculpas que assumimos para evitar remorosos ou responsabilidades em relacionamentos falidos. São a mente calculista. Uma personagem tão fria que é incapaz do corpo a corpo que um assassinato exige. As mãos sujas de Macbeth, dentro e fora da metáfora, assombram também sua mulher, enlouquecida em razão da própria destruição moral.

O valor de obras como Macbeth, escrita há quase 410 anos, é exatamente o seu valor como arte, já que a História foi muito alterada, possivelmente para acomodar conveniências. Mas a arte prevalece no sentido daquilo que ecoa nos nossos mais escondidos desejos, também nos mais óbvios. Arte como associação daquilo que é mas não sabemos por quê ou como. Arte como olhar diferenciado da rotina, com sensibilidade e originalidade. Macbeth nada mais é que uma história de ambição, poder, corrupção, vaidade e eventual loucura. Em tempos de política aflorada em bocas antes caladas, Shakespeare vem como o homem a frente do tempo, de qualquer tempo. Capaz de apontar com enorme precisão tudo aquilo do que somos feitos. A má notícia? Continuamos os mesmos, assim feito Macbeth. Eis a arte, o eco dos tempos. Por outro lado, tem sempre o amor que também nos traz possibilidade de predicados. Mas mais leves, como se nos comparasse a um dia de verão.

 

Informação: as celebrações dos 400 anos da morte de Shakespeare acontecem este ano por todo o Reino Unido, com espetáculos, oficinas e exposições em Londres, Stratford upon-Avon até Inverness, na Escócia, cenário da tragédia de Macbeth.

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Nara Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, é Mestre em Artes pela London Met University. Mora na Europa há 14 anos. É autora de infantis, juvenis e seu primeiro adulto, “Lugar Comum” (Editora Pasavento), já em reimpressão, foi lançado em abril deste ano. Nara já participou como autora palestrante em diversas feiras literárias como a Flipoços, Clim, FNLIJ e Cheltenham Festival. Premiada com o Maximiano Campos e com o Brazialian Press Awards, Nara tem textos publicados em revistas como Germina, Mallarmargens e Confeitaria. Escreve sobre dança e artes para publicações inglesas. Lança este ano o livro de contos “A loucura dos outros” pela Editora Reformatório.

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