Morte em Veneza – Do livro ao filme, da epifania à queda

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Morte em Veneza – Do livro ao filme, da epifania à queda

Morte em Veneza

Um momento suspenso no tempo, breve como o escoar da areia na ampulheta observada por Aschenbach, perceptível somente no final, “quando não resta mais tempo para pensar a respeito”: assim nos afigura a via crucis de Gustav Von Aschenbach em A morte em Veneza, livro de Thomas Mann transposto com precisão e originalidade para as telas do cinema por Luchino Visconti.

Mais que uma adaptação da obra de Mann, Morte em Veneza complementa a obra literária, dá a ela sentidos novos sem deturpar sua essência. Não realizando mera cópia, Visconti consegue manter, portanto, a originalidade e o caráter de “arte” do cinema, dá significações complementares ao filme.

 

Do livro ao filme

Com a leitura do livro de Mann, sabemos que o desejo de viajar foi despertado no protagonista – na obra literária, um escritor e, no filme, um músico – ao deparar-se com um forasteiro ruivo de mochilas nas costas quando contemplava uma capela bizantina em Munique, sua cidade. No filme, este início é suprimido. Diferentemente do livro, Visconti inicia a história com a chegada do navio de Aschenbach, o Esmeralda, em Veneza, sem deixar, porém, por este corte, escapar o todo da obra.

Assim como o livro, todo o filme é transpassado por indícios do que viria a acontecer para o músico na Sereníssima. A tragédia que o espera, a morte já anunciada no título, viria sorrateira, “serenamente”, sem grandes alardes e, até mesmo, gradativamente aceita por Aschenbach, como um mártir sacrificando-se pelo seu ideal, pelo seu deus.

Um desses mais claros indícios, a frase dita pelo estranho gondoleiro, também ruivo, em resposta à pergunta de Aschenbach sobre o preço da viagem: “- O senhor pagará.” (MANN, 1971:112), soa como uma profecia, um destino inevitável reservado para o protagonista. Em tal cena, podemos mesmo perceber um medo repentino, um tremor de lábios na face do viajante, assim como o notamos diminuído em relação ao gondoleiro, posto que sempre é filmado em plongée, ao contrário do seu condutor, filmado em contra plongée. Também a comparação das gôndolas com ataúdes, encontrada nas linhas de Mann e perceptíveis nas imagens de Visconti, deixa entrever certo tom sinistro já no início da viagem de Aschenbach. O estranho e o sem relação buscados por ele em sua viagem iniciam por se revelar.

O espírito recriativo de Visconti fez de Aschenbach, como já dito, passar de escritor para músico. Assim, a trilha sonora, mais que simples acompanhamento no filme, faz-se presente em quase todos os momentos, como uma personagem, sempre dando significações para as cenas.

Da tela quase totalmente escura com um fundo musical assinado por Gustav Mahler, a imagem da chegada do navio Esmeralda vai-nos aparecendo. A tela se abre aos poucos como que deixando-nos apenas entrever o que se passará, para, ao final, fechar-se retornando para a música inicial. A música, segundo uma fala do filme, “a mais ambígua de todas as artes”, transpassará, pois, toda a obra fílmica, imbuindo-lhe de sentido.

Tal contraponto identificado entre a obra literária e a obra cinematográfica acaba por funcionar no filme como um fator de questionamento sobre a arte musical, o que no livro seria acerca da arte literária.

 

O resultado da transposição (ou adaptação cinematográfica)

Como alcançar o realmente belo? A recriação do belo pela arte – o que resultaria num belo artificial – superaria o belo natural? Há na obra, tanto fílmica quanto literária, um embate entre a razão e os sentidos: Gustav é um músico/escritor cuja carreira encontra-se em perceptível decadência; voltado mais para a racionalidade no ato criador que para a criação fluida dos sentidos, o artista tem, em Veneza, sua revelação.

No salão do hotel em que se encontra, em meio a hóspedes de diferentes países unidos pelo universal traje de noite, a esperar pelo jantar, o viajante vê o deus: o belo, Tadzio. Esse momento epifânico de Aschenbach – momento de revelação e de transcendência de um plano – é que o guiará pela história até seu final catártico.

Cabe sublinhar aqui que essa cena do filme remete, como inúmeras outras que serão pontuadas a seu tempo, ao quadro do impressionista Renoir, Le Moulin de la Galette, assim como também percebemos dentro na cena o Menina de Fita Azul, do mesmo pintor. Há, portanto, nesta recorrência do filme ao estilo impressionista, a mesma intenção de retratação do real, de aproximação da realidade, dando-lhe a mesma delicadeza, frescor e fluidez de um momento capturado.

Tadzio, de família tradicional polonesa composta por mais três irmãs e a mãe, vê-se sempre rodeado e mimado pelos demais, em especial por sua mãe, que aparenta idolatrá-lo e até mesmo incentivar um certo complexo de Édipo no filho. O belo, entretanto, demonstra apenas descaso para com tanta preocupação. Também Aschenbach começará a agir como os que rodeiam Tadzio: depois de observar a perfeição de traços do adolescente, passará a se ver cada vez mais preso à beleza do menino, idolatrando-o em segredo.

 

Os significados do filme

Mais forte que um caráter de homossexualidade, o que fica patente é uma paixão, uma idolatria e atração do artista pela beleza natural e ao mesmo tempo divina do garoto, beleza esta não recriável por inteligência humana e, por isso, uma desconcertante evidência de sua falibilidade na busca incessante pela (re)criação do perfeito através da razão.

No filme, talvez pela já citada predominância das pinceladas inacabadas do Impressionismo, percebemos um Tadzio pouco apreensível como personagem, além de etéreo pela divinização que lhe é dada. O que vemos é um símbolo da perfeição: o belo, Tadzio – não o contrário. O garoto, de beleza clássica e andrógina, perpassa as cenas do filme quase sempre observado de viés pelo seu admirador, ora assemelhando-se a Cristo – episódio final em que parece caminhar sobre as águas –, ora evocando deuses pagãos gregos – como na cena em que, enrolado na toalha de praia, ao passar diante de Aschenbach, parece trajar uma túnica.

Marcada é também no filme a ideia de decadência, que dominava a Europa de então, à beira da Primeira Guerra Mundial. A cidade de Veneza, significando o belo artificial, que começará a sofrer a decadência através do cólera antes mesmo do viajante, faz um paralelo com Tadzio e sua jovem beleza natural. Veneza, charmosa cidade que atrai muitos turistas todos os anos, vê-se sendo degradada pela peste; a beleza da cidade, que percebemos nas cenas iniciais do filme, vai aos poucos murchando. Repentinamente, notamos que não há mais tantos turistas, não há mais beleza, ainda que artificial: a peste deteriorou a cidade. Como um símbolo da luta contra a ação do tempo e da doença – assim como acontece com o envelhecido Aschenbach –, Veneza vê-se derrotada. É possível notar o contraste entre juventude e velhice, respectivamente o puro e o impuro, em uma fala do filme: “Você está velho, Gustav. E no mundo inteiro não há impureza mais impura do que a velhice”, após a qual, estrategicamente, sucede-se a imagem em big close do rosto de Tadzio.

Já então o escritor/músico encontra-se entregue à idolatria de seu ídolo, seu deus. Aschenbach, ao saber da peste que assola a cidade, tenta fugir, mas, convenientemente para ele, sua mala é desviada, o que o faz permanecer em Veneza. A música de Mahler pontua bem o momento em que Aschenbach parte do hotel e a sua volta, pouco tempo depois, feliz por ter de ficar por mais tempo. A trilha sonora, no momento da partida faz-se triste, lenta, mostrando o viajante sério e retraído. Quando Aschenbach retorna satisfeito pelo contratempo com a bagagem, que o permitiria observar seu Tadzio por mais vezes, a música torna-se exultante, aliando-se ao rosto esperançoso do artista. Este não está preocupado em retornar a uma cidade dominada pela peste, parece até mesmo ter esquecido do mal pelo prazer de estar próximo do venerado Tadzio. Gustav Von Aschenbach se rende sem pensar ao seu destino; modificado pela “paixão”, pela ação dos sentidos, agora não mais age orientado somente pela razão.

Outro momento de comparação entre pureza e impureza se dá quando Tadzio, o deus puro, observado num momento em que toca despreocupadamente Für Elise ao piano, faz o músico recordar-se de um episódio em que se encontra com uma prostituta, de nome Esmeralda (o mesmo do navio), a qual executava a mesma melodia ao piano quando Gustav entrou no quarto. Reforça-se aí a idéia de divinização e de inalcançabilidade do garoto. A prostituta remete ao impuro; Tadzio, um duplo de Esmeralda, à pureza intocada. Ressaltemos que numa das últimas cenas com a prostituta identificamos certa aproximação com outro quadro de Renoir, Mulher de Argel, visto que Esmeralda se posiciona na cama de modo praticamente idêntico ao da namorada do pintor que posou para o quadro, Lise Trehot.

 

As consequências da tragédia

Ao decidir-se por ficar na Veneza doente, Aschenbach entrega-se ao seu fascínio pelo jovem belo e passa a segui-lo mais de perto. A cena em que o músico, após perseguir por um tempo o garoto, acaba por sentar-se esgotado numa praça da cidade já totalmente destruída pela peste, sem a beleza que lhe era peculiar outrora, como que marca o referido processo de decadência, mas desta vez há uma convergência de músico e cidade: ambos decaíram, ambos degradaram-se de alguma forma. Apesar de Aschenbach não ter sido ainda derrubado pela peste, mesmo já sentindo seus efeitos, violou-se internamente em nome de seu deus, modificou-se. Ademais, o início de tal tomada (enquadrando o centro da praça e o viajante no canto direito, em pé) é filmado de cima, em plongée, dando a dimensão do caos e a sensação de impotência diante das duas situações: a de Veneza e a de Aschenbach.

Sem dar-se conta, Gustav acaba por ficar exatamente como um velho janota meio embriagado que o incomodara no momento do desembarque em Veneza. Cego pelo seu fascínio, passa a ter atitudes que anteriormente repudiara. De fato, não é mais a razão que o domina. Enfeita-se para desfilar em uma Veneza cheirando a morte, mas o importante para ele é Tadzio, mais nada. Imaginava mesmo a possibilidade de aproximação dos dois pela tragédia da peste, esse e outros devaneios dominavam Aschenbach.

A tragédia do viajante, entretanto, já estava anunciada. Ao vislumbrar o deus, o belo, Aschenbach ultrapassa o nível dos mortais e, por tal, será punido com a morte.

Como é sabido, no conceito de tragédia há, em geral, o envolvimento de uma personagem com algum poder de instância maior (a lei, os deuses, o destino, a sociedade), podendo resultar num final catártico que, de acordo com Aristóteles [na Poética?], deve ser triste. Pois bem, a tragédia de Aschenbach o conduz à morte, morte pela transgressão da ordem natural dos homens, morte pela visão e posteriores tentativas de aproximação do deus.

Nas areias da praia, próximo ao mar através do qual Aschenbach chegara, temos a última passagem do livro e também a última cena do filme. É já perceptível, nesta tomada final, a decadência daquele ambiente, representando o que acontecera a toda a cidade e, num plano maior, o declínio de toda a Europa e do homem e artista Aschenbach – que são agora um só, juntos no fundo do poço:

“Lá não estava acolhedor. Sobre a extensa e rasa água que dividia a praia do primeiro longo banco de areia, corriam borrascas encrespadas de frente para trás. Outono, sobrevivência demasiada, parecia pairar sobre o lugar de veraneio, antes tão animado de cores e agora quase abandonado, cuja areia não era mais conservada limpa.” (MANN, 1971: 170)

Os turistas, quase todos afugentados pela peste, haviam deixado a cidade. A praia, antes sinônimo de alegria, parecia mais cinzenta, mais triste, a atmosfera pesava. Foi ali, entretanto, o local onde mais Gustav Von Aschenbach pôde observar serenamente seu venerado. Este local será, portanto, o último em que o admirará, antes de sua morte.

Após furiosa briga com um outro rapaz, com o qual chegou a rolar na areia, Tadzio, sempre sob os olhares de Aschenbach – já nos estágios finais da doença e que havia se sentado com dificuldades numa cadeira de praia – segue para a água. Apreendido pela câmara que nos mostra a visão que o músico tinha dele – de costas, com raios de sol refletindo e tornando seu corpo mais vago, como um esboço, uma sombra –, o corpo de Tadzio assume caráter elevado, divinizado. O garoto que, à semelhança de Cristo, parece caminhar sobre as águas, contrasta com a tinta que vemos escorrer do cabelo de Aschenbach como se fosse o sangue de um mártir.

Gustav Von Aschenbach quer ir ao encontro de Tadzio, sua revelação e prisão, mas não consegue erguer-se. Pensa mesmo que o garoto acena para ele e, numa última tentativa de alcançá-lo, num último esforço, cai inerte, morto. Tadzio, o perfeito, não foi capaz de conduzir o artista até a perfeição, não pôde salvá-lo, antes desnudou diante dele uma verdade que o ofuscou. O saber, o conhecer, não libertou Aschenbach, mas sim o aprisionou e puniu.

 

A música como complemento em Morte em Veneza

A música, completando o drama da última cena, torna-se desesperadora, grave, trágica ao tempo em que o morto é carregado por empregados do hotel ante o pasmo dos demais banhistas.

Em dois momentos dessa cena de desenlace do filme, podemos perceber a presença de uma câmara (cinematográfica, fotográfica?): logo que Aschenbach chega ao local, e quando Tadzio está já caminhando no mar. Ressaltemos que o objeto já havia aparecido na praia em cena anterior e que também em sua obra Mann cita “um aparelho fotográfico, aparentemente sem dono, (…) à beira do mar sobre seu tripé (…).” (MANN, 1971:170). Ao observarmos a última tomada em que a câmara aparece, constituindo ela mesma parte da obra de arte cinematográfica em questão, é-nos sugerida a leitura de que o fazer cinematográfico é colocado também em questão. Teria, então, o filme um caráter metalingüístico? Parece-nos possível. Visconti uniu à discussão musical de sua (re)criação da obra de Mann um questionamento da própria arte com a qual trabalha.

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