“[…] a leitura de Mrs Dalloway, portanto, é um refresco abissal: derruba-nos para dentro de nós mesmos, inebriando-nos com a permanência do próprio eu, recordando-nos da importância da sensibilidade que não é física, livrando-nos do tédio da simplicidade”.
Escrever sobre uma obra imortalizada na literatura mundial, aclamada por milhares de leitores e revisitada ao longo das décadas pelas mais ávidas compreensões sempre parece uma tarefa estranhamente paradoxal: se, por um lado, Mrs Dalloway já foi lido, relido, interpretado e dissecado por tantas cabeças, sua eternidade guarda em si uma noção sempre presente nos melhores livros—são inesgotáveis. A escrita intimista e profunda de Woolf já guarda em si a lógica desse princípio. É durante apenas um dia que toda a trama se desenrola, se é que podemos, aliás, chamá-la de trama—os eventos do cotidiano de Clarissa Dalloway e a sociedade ao seu redor não se limitam a fatos, muito pelo contrário: enriquecem-se no mundo interno, buscando significado na percepção particular, distribuindo ao leitor uma profusão de pensamentos e sensações descoordenados e diversos, construindo o universo etéreo que de fato reveste a realidade, tingindo-a de cores diferentes de acordo com os olhos que a veem. É nessa confusão caracterizada pelo fluxo de consciência que brotam os mais profundos assuntos. E entendemos que construímos a densidade do resto a partir da nossa, como Peter Walsh seguindo uma estranha e atribuindo-lhe um pretexto imaginário na rua; como Clarissa promovendo a sua própria expressão no esmero de suas festas; como Septimus escutando ao canto profético dos pássaros.
Woolf empreende uma espantosa viagem psicológica ao nos apresentar Septimus—veterano de guerra condecorado, cujos sofrimentos da guerra ainda perturbam sua sanidade, fazendo toda a configuração habitual de sua vida, o casamento com Rezia, os versos de Shakespeare e um mero passeio no parque desabarem diante da dormência que lhe envolve. Septimus e sua criadora têm muito em comum, tendo Virginia tido diversas crises durante a vida, e sendo diagnosticada, comumente, como vítima de distúrbio bipolar. Antes de se matar afogada aos 59 anos, Virginia já havia tentado se jogar da janela—maneira pela qual Septimus se suicida. É provável que eles também dividissem o ódio pelos tratamentos psiquiátricos da época, ou Virginia não o teria criado. A crítica à figura do psiquiatra, profissão ainda tão iniciante na época, é bastante óbvia quando a própria Rezia compara seu vulto ao de um demônio. Mas mais curiosa é a afirmação da própria Woolf a respeito da obra: numa primeira versão, quem se matava era Clarissa, e não havia Septimus; Septimus era um duplo de Clarissa, como um pedaço dela completamente dissociado, tanto que os dois personagens jamais se conhecem. É inevitável imaginar que a soma dos dois correspondessem em parte à natureza da própria autora—a dualidade ora saudável, ora doente da bipolaridade, o otimismo saudoso de Clarissa e o delírio inspirado de Septimus, como a inspiração artística, densa e visceral que tanto constrói e tanto destrói do escritor, não por acaso profissão mais ligada a distúrbios mentais.
Mas em todos os personagens há a marca inegável do tempo; em todas as mentes há esse quê meio inventado, meio esquecido de memória, de saudade e decadência. Sally Seton, melhor amiga de Clarissa durante a sua juventude, é uma recordação idealizada de uma paixão juvenil pela independência e pela transgressão. Anos depois, no entanto, no clímax do livro, a festa que a protagonista passou o dia organizando, ela ressurge como uma desconhecida trivial que casou, teve cinco filhos e não é minimamente romanceada pela nova Clarissa. Peter Walsh é o amor desprezado, a paixão que nunca daria certo, agora um potencial desperdiçado que coleciona confusões amorosas. Hugh Whitbread é uma caricatura de aspirante à nobreza que parece cada vez mais gordo, cada vez mais bajulador. A própria Clarissa perdeu seus impulsos transgressores da meninice e seu brilho majestoso. A velhice começa a alcança-la, e por vezes é esnobe, e por vezes insensível. A passagem do tempo é inevitável e transformadora, mas as maiores metamorfoses são aquelas que ocorrem na percepção dos personagens—pois a existência, no mundo de Woolf, é tecida pelos fios complexos do mundo interno.
Numa sociedade em que a literatura virou negócio e a profundidade já não interessa tanto assim, a leitura de Mrs Dalloway, portanto, é um refresco abissal: derruba-nos para dentro de nós mesmos, inebriando-nos com a permanência do próprio eu, recordando-nos da importância da sensibilidade que não é física, livrando-nos do tédio da simplicidade.
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Maria Luiza Artese é escritora em progresso por paixão, estudante de jornalismo por acidente; defensora dos adjetivos e entusiasta da opinião, fugindo ocasionalmente para o mundo real.