Muito barulho por muito – O amante de Lady Chatterley

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O que teria nesse livro para irritar parte da sociedade inglesa defensora da moral e dos bons costumes na década de vinte?

David Herbert Lawrence

Tentando me posicionar com base e justificativa, além de mera intuição, sobre o assunto de banir ou proibir livros de serem comercializados, me deparei mais uma vez com O amante de Lady Chatterley.

À primeira vista, na faculdade de Letras, eu era seduzida por outros autores que mostravam uma narrativa mais original que aquela de D.H. Lawrence. A voz narrativa bastante convencional, conservadora do romance comprometeu meu envolvimento até a minha releitura há pouco mais de um ano.

Mas o que teria dentro daquele livro para provocar a ira de parte da sociedade inglesa defensora da moral e dos bons costumes na década de vinte? Interessante pensar que as referências sexuais da obra, tópico que mais gerou polêmica na época da publicação, não são pra mim a principal razão que faz desse livro a referência que é hoje.

É razoável contextualizar historicamente os temas e subtemas da narrativa para tentar compreender o choque causado pelo livro. É exatamente essa identificação histórica que gera uma interessante discussão acerca do moralismo (ou falta dele) do livro. Mesmo tendo sido escrito no período que engloba o intervalo entre as duas grandes guerras, sendo assim, um livro pós-vitoriano, os valores cultuados durante o reino da rainha Vitória passaram a definir o inglês e seu comportamento de uma maneira irreversível. É curioso estudar essa herança de comportamento num povo de projeção excêntrica e grande originalidade. Há certo choque, depois de passado algum tempo em companhia inglesa, perceber que não é tão fácil ou possível tirar a era vitoriana de dentro do inglês.  Período esse que estabeleceu valores cuja característica mais predominante é saber comportar-se de maneira apropriada e conservadora, implicando todo e qualquer machismo dentro dessa expectativa.

De repente, temos uma voz narrativa em O amante de Lady Chatterley que sugere a liberação sexual, intelectual e emocional da mulher como se desafiasse o período vitoriano. Mas esse período já passou e a Britânia vive então a dureza de um momento entre guerras. Vive também a prática das diferenças de classes, particularmente estabelecidas entre o norte e o sul. É inquestionável a importância da herança vitoriana no que se seguiu e é na literatura de D.H. Lawrence, especialmente O amante de Lady Chettterley, que tais resquícios são muito evidentes. Ainda é possível tocar a diferença entre norte e sul, seus sotaques, intenção de valores. Um norte orgulhoso do senso comunitário e trabalhador contra um sul dândi, boêmio, capitalista e esnobe. Nada mudou muito. Posso assegurar.

oamantedeladychatterleyNão existe, na narrativa do comportamento, grande distinção no papel social da mulher descrito, por exemplo, no excelente livro de Richard D. Altick Victorian People and Ideas (Norton, 1973) em que a expectativa de uma função ornamental e fútil era não só esperada, mas aceita sem grandes desafios ou questionamentos por homens e pelas próprias mulheres.

A característica mais interessante do romance é exatamente a contradição. A sugestão do progresso, no sentido do avanço, do relaxamento da moralidade e sexualidade em torno da mulher, e a repressão, o conservadorismo na forma da obra.

O livro desenvolve ainda o pensamento não muito usual daquele momento e que engloba o corpo e o intelecto como um exercício para culminar numa liberdade feminista, mesmo que escondida no objetivo de um matrimônio feliz, ideia mais identificável no livro. Eis o grande escândalo da história. Eis o melhor do autor nesse texto. Eis o grande perigo do livro nos anos vinte. Fico imaginando uma reunião com os conservadores da época, homens da censura que repugnaram o livro. Ao menos um deles deve ter visto o potencial perigo da revolta feminina no romance de Lawrence, e maquiou tudo como se fossem os termos sexuais e os orgasmos os verdadeiros riscos para a sociedade.

Eu poderia me deter no fato de Joyce produzir uma literatura muito mais original que essa de D.H. Lawrence no mesmo período. Mas O amante de Lady Chatterley teve importância e destaque indiscutíveis, mesmo se nos limitarmos à censura sofrida pela obra.

Voltei a pensar sobre banir a venda de livros. O amante de Lady Chatterley foi banido aqui no Reino Unido lá em 1928, quando foi publicado, até, pasmem, 1960. Então, lá em 1959 foi criado o ato parlamentar que permitiu a publicação de textos considerados obscenos, desde que fossem para arte ou “distração”. Foi aí que O amante de Lady Chatterley voltou. Por causa da proibição, a Penguin vendeu, só no primeiro dia, 200 mil cópias.

Num café local, levei minha cópia e comecei a fazer anotações para este texto. Pensei nas minhas amigas inglesas e se alguma delas dá a impressão de reprimida, eu culpo a era vitoriana que assombra a sociedade inglesa, especialmente quando instituições feito a família são formadas.

Abri meu livro e comecei a destacar algumas passagens. Levantei e fui pedir outro café. Uma conhecida entra e vem me dar um alô. Ao passar os olhos pela mesa e deparar-se com a capa da edição Collins Classics, ela pisca um olho e me diz “Sei… O amante de Lady Chatterley. Sua danada.”

Eu retribuí o sorriso, mas sem a piscadinha, já que o que me escandalizou foi a agitação dela.

Talvez a maior verdade deste texto seja que o inglês saiu da era vitoriana, mas a era vitoriana não sai do inglês. Nunca mais. Tornou-se uma constância. (Com perdão do trocadilho.)

 

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Nara Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, é Mestre em Artes pela London Met University. Mora na Europa há 14 anos. É autora de infantis, juvenis e seu primeiro adulto, “Lugar Comum” (Editora Pasavento), já em reimpressão, foi lançado em abril deste ano. Nara já participou como autora palestrante em diversas feiras literárias como a Flipoços, Clim, FNLIJ e Cheltenham Festival. Premiada com o Maximiano Campos e com o Brazialian Press Awards, Nara tem textos publicados em revistas como Germina, Mallarmargens e Confeitaria. Escreve sobre dança e artes para publicações inglesas. Lança este ano o livro de contos “A loucura dos outros” pela Editora Reformatório.

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