A literatura de Robert Walser é marcada pela apologia do nada, e ler sua obra onde não há respostas para nada é aniquilador
Um dos escritores menos lidos pelo público brasileiro é, sem sombra de dúvidas, o suíço de língua alemã Robert Walser. Nascido em 15 de abril de 1878 e morto em 25 de dezembro de 1956, Walser foi “somente” o ídolo confesso, mestre e modelo de Franz Kafka, escritor admirado por Robert Musil e Walter Benjamin, aclamado por personalidades como Elias Canetti, W. G. Sebald e tantos outros. Dono de uma literatura sui generis, Walser, que é lido vorazmente nas terras do euro, tem no Brasil, hoje, apenas duas traduções, ambas de Sérgio Tellarolli, uma pela Editora 34 (Absolutamente nada e outras histórias – contos e esquetes) e outra pela Companhia das Letras (Jakob von Gunten – romance).
A literatura de Walser é marcada, em seu aspecto primordial, por uma verdadeira apologia do nada. Assim, todos os costumes sociais, todos os sonhos humanos, nossas construções e relacionamentos são relegados à posição que de fato têm: a de absolutamente nada. Em narrativas enxutas, inteligentes e extremamente sarcásticas, Walser cria o que arrancaria risadas de Kafka mais tarde: personagens extremamente ciosos de sua desimportância.
Por exemplo, num conto homônimo ao livro recentemente lançado pela 34, uma mulher “que era mesmo só um pouco esquisita” sai à feira na esperança de encontrar algo extremamente especial para fazer um jantar para seu marido. Ciosa de seu objetivo, ela perambula pelas ruas e pelas feiras, nunca satisfeita com o que acha pelo meio do caminho. É que, ao que parece, estava com a cabeça em outro lugar. No fim das contas, retorna para casa carregando consigo absolutamente nada e é isso o que serve a seu marido. O homem, confuso, e sem saber como reagir, dissimula à mesa, mostrando-se satisfeito, quando, em verdade, nutre grandes preocupações quanto ao comportamento da mulher vez que não sabe se, um dia, ela poderá matá-lo de fome: “é provável que muitas coisas lhe apetecessem mais do que absolutamente nada”. (2014: 73).
É óbvio que a cena da mesa pode arrancar alguns risos do leitor, mas o fato mesmo é que subliminarmente exsurge a mensagem que Walser deixa, como Carroll, aos atentos: por que o nada nos incomoda tanto? Por que fugimos tanto do nada de onde viemos? Por que a cultura e a linguagem existem e têm a carga de valoração que as damos? Longe de darmos respostas às perguntas, parece que diante do estranho nosso comportamento automático é o estarrecimento ou mesmo o comportamento do marido que janta o nada: o de dissimular.
Nada de respostas na obra de Robert Walser
Aliás, tem como título Resposta a uma pergunta um dos contos mais apaixonantes do Walser, escrito em 1907 e integrante da coleção da 34 (divulgado integralmente na Ilustríssima), no qual o narrador-personagem responde aos questionamentos de um personagem implícito que, pelo que o primeiro narra, lhe pede um mote para uma esquete ou pequena peça teatral. A resposta é simplesmente um dos textos mais imagéticos que li na vida, no qual a dor, o desespero, o existencialismo enquanto matéria pulsante no indivíduo humano, bem como o gracejo, a ironia, o nonsense e os chistes dos débeis, encontram o mesmo pouso:
“(…) mande confeccionar uma série de fantasias e trate de adquirir algumas boas e sólidas peças de cenário, a fim de que, envolto em um casaco negro, o senhor possa descer uma escada ou olhar para fora por uma janela e soltar um urro, um urro breve, leonino, denso, pesado, de modo a fazer com que de fato acreditem que é uma alma humana que urra, um peito humano. Peço-lhe que dedique muita atenção a esse grito, que lhe confira elegância, o senhor pode apanhar um tufo de cabelo e deitá-lo por terra ‘doucement’. Quando realizado de maneira graciosa, isso produz um efeito horripilante. Vão pensar que o senhor embruteceu de dor. Para obter um efeito trágico, é necessário recorrer tanto aos recursos mais à mão quanto aos meios mais remotos, o que lhe digo para que o senhor compreenda que será bom, agora, enfiar o dedo no nariz e cutucar a valer”. (2014: 9).
Nessa linha, uma das obras primas do gracejo é Jakob von Gunten, romance escrito por Walser em 1909, em formato de diário – e filmado pelos irmãos Quay em 1995 –, no qual Jakob, filho de uma família abastada do ancién regime alemão, os von Gunten, resolve matricular-se no Instituto Benjamenta, um desses velhos cursinhos salafrários que ainda vemos com as portas abertas em esquinas e becos dos centros das cidades, que, em troca de dinheiro, ensinam os seus alunos a serem absolutamente nada, e a crescer bem pouco na vida. Jakob, ao contrário do que se esperaria de um indivíduo de sua procedência, deleita-se em aprender a ser um nada, um zero à esquerda com zero exponencial, um verdadeiro esquecido do mundo. E é desse modo que já começa a primeira linha de seu diário:
“Aqui se aprende muito pouco, faltam professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, vamos dar em nada, ou seja, seremos, todos, coisa muito pequena e secundária em nossa vida futura”. (2011: 7).
Todavia, longe de tecer uma história de vários nadas, Jakob von Gunten faz, no pouco a pouco, críticas contundentes e crescentes à burocratização da cultura:
“Vestimos uniformes. Usar uniformes é algo que, a um só tempo, nos humilha e enobrece. Parecemos pessoas privadas de liberdade, o que talvez constitua humilhação, mas ficamos bem de uniforme, e isso nos distancia da vergonha profunda dos que andam por aí em trajes mais que próprios e no entanto sujos e esfarrapados” (2011: 8).
Aos regramentos e ao comando da obediência civil:
“É por isso que todo tipo de obrigação me é cara: porque nos possibilita a alegria da transgressão. Se não houvesse nenhum mandamento neste mundo, nenhuma obrigação, eu morreria, pereceria de inanição, me estropiaria de tédio. Que me incitem, pois, que me obriguem e tutelem. Acho absolutamente adorável. No fim, quem decide sou eu, e ninguém mais”. (2011: 26).
À obrigatoriedade da busca pelo sucesso:
“Na verdade, é terrível como se parecem todos aqueles que se esforçam para obter sucesso neste mundo. Têm todos a mesma cara”. (2011: 104).
À comum subserviência às ordens sociais:
“Mas muito, muito mais refinado do que pensar é submeter-se. Pensar é resistir, o que é sempre muito feio e desagregador. Os pensadores… Se pelo menos soubessem quanta coisa arruínam” (2011: 82).
E, por fim, ao próprio ideal de liberdade num mundo que quase se destruiu em duas grandes guerras:
“Talvez todos nós, homens de hoje, sejamos como escravos, dominados por concepções de mundo zangadas, chicoteantes e grosseiras”. (2011: 71)
Em Jakob von Gunten, Walser ainda constrói o antagonismo comportamental que inspiraria para sempre Franz Kafka: enquanto Jakob foge do seu irmão, que é rico e bem-sucedido, porém infeliz, mas, de qualquer modo, um gigante diante dele, encontra no Instituto de criados onde se refugia para aprender a bem servir, o Senhor Benjamenta que nada mais é do que um leão diante dele, que é uma ovelha, mais um gigante, cuja experiência e mistério sufocam Jakob por todo o caminho.
E é esse personagem esquisito, vadio, detentor de uma moral lasciva e vagabunda, que dança entre macacos treinados que aprenderam a não pensar, e nos traz nas 148 páginas do romance da Cia das Letras, inúmeras reflexões sobre a civilização e a sociedade.
Nesse contexto, útil ressaltar que Robert Walser viveu tempo suficiente para acompanhar as duas grandes guerras mundiais e a guerra fria, portanto, foi contemporâneo do extermínio, seja de homens tratados como peões de xadrez entre 1914 e 1918, seja de povos em razão do fascismo e nazismo com suas ideologias dominatórias e robotizadoras do indivíduo humano, seja da própria espécie humana com as ameaças da guerra fria.
Walser presenciou, portanto, o início de uma constante aniquilação do indivíduo humano, e tudo isso em nome da razão e da ciência médica, uma das mais preconceituosas e religiosas de todos os tempos, que, em início do século XX, criou tantos conceitos e perversões para discriminar indivíduos humanos, em nome de uma pureza e eugenia ilusórias.
Frente a tudo isso, o suíço pacato que gostava de caminhar perdidamente e sem retorno pelas florestas declamando versos de Kleist, portanto, um completo estranho, erigia a sua literatura da nadificação, o seu culto à insignificância, ao absolutamente nada dos costumes humanos e das razões de nosso viver. E foi sendo tão fiel a tudo o que escreveu que em 1929 internou-se por livre e espontânea vontade numa clínica psiquiátrica dos arredores de Berna, sendo em 1933 transferido para outra em Herisau, onde morreu insignificante e indigentemente num de seus passeios na neve em 25 de dezembro de 1956.
A literatura de Robert Walser passa ao largo de ser inocente. Todo o nonsense walseriano deságua num sarcasmo evidente. Diante da pena do suíço nos deparamos com aquele problema inicial que abalou a espécie humana e nos impulsionou à busca de um sentido para nós: não somos nada, não há sentido em estarmos no mundo, o que podemos fazer a não ser buscarmos um sentido para nós, erigirmos sociedade, cultura, costumes, nos tornarmos algo? Um algo repleto de nadas. Um pouco como Mark Twain apregoa em seu Diário de Adão e Eva – a árvore do conhecimento como uma catástrofe à nossa espécie.
Ler Robert Walser é aniquilador.
Referências
WALSER, Robert. Resposta a uma pergunta. Disponível em: Ilustríssima – Folha de São Paulo.
WALSER, Robert. Jakob von Gunten. Tradução: Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
WALSER, Robert. Absolutamente nada e outras histórias. Tradução: Sergio Tellaroli. São Paulo: Editora 34, 2014.