Não estamos escrevendo muito sobre o que não nos pertence mais?

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“Surpreende-me que escritores que têm a possibilidade de coletar referências à sua volta se lancem a três, quatro, cinco décadas atrás para desenvolver física e psicologicamente seus personagens e enredos.”

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Foto de Starmanseries

Só neste ano já li três livros, escritos por escritores contemporâneos com menos de 28 anos, onde o personagem central da trama é fumante, possui uma vida depressiva e frustrada (com direito a pensamentos suicidas), é um fracasso no trabalho, jornalista ou advogado, antissocial, e, claro, coincidentemente escreve poemas. Isto quando não é um especialista em música clássica ou esbanja referências de jazz em seus diálogos. Sinto falta, no entanto, do Facebook, de pessoas indo à academia, de amores não tradicionais, de gente vomitando cerveja ao invés de “rebolar o copo de uísque na mão enquanto mira as belas ancas de uma mulher” e de alguém falando sobre videogames e aplicativos de celular.

Não que eu queira enquadrar a literatura numa caixinha. Pelo contrário. Gostaria muito de ler mais livros que estivessem fora dela. E sei que eles existem, óbvio. Mas me surpreende que dentro de um contexto contemporâneo eles ainda sejam minoria; surpreende-me que escritores que têm a possibilidade de coletar referências à sua volta se lancem a três, quatro, cinco décadas atrás para desenvolver física e psicologicamente seus personagens e enredos. O resultado é mais do mesmo, uma reprodução. Não conseguimos nos desvencilhar de modelos de sucesso, que foram prósperos em suas épocas devido à identificação e contextualização impecáveis com o momento em que foram escritos, mas que talvez já não caibam mais ao que nos tornamos. Pare para pensar o seguinte: quantos personagens de livros que você já leu são um Nick Belane? Um Hamlet? Que possuem a personalidade de Tyler Durden ou de Sherlock Holmes?

Este raciocínio, completamente pretensioso e, imagino, vacilante (já que não sou nenhum teórico literário consagrado nem alguém que movimente uma mísera parcela do mercado editorial com uma opinião), busca evidenciar que talvez estejamos movimentando os mesmos escopos do passado para o presente, às vezes cautelosos com a linguagem, mas esquecendo completamente nosso contexto, apenas buscando entrar no perfil “legitimado” de escritor, usando palavras como “lascívia” e “deveras”. Esquecemos de registrar coisas que seriam ótimos objetos de literatura, reconhecíveis pelos leitores, fatos do cotidiano e que acontecem o tempo todo: alguém assistindo algum vídeo no  Youtube, alguém pesquisando algo no Google, tocando punheta, um comercial de cerveja na TV, um novo filme de super-herói, um carro que passa na rua com o som tocando um funk carioca. Há muito sobre o que escrever.

Gosto muito de ler e assistir a resenhas de livros, não só de especialistas no assunto, mas também de leitores amadores, como eu. Há um parecer que já identifiquei em vários destes textos e vídeos, inclusive dos resenhistas mais experientes, que é: “Eu ainda não acredito como este livro possa ter sido tão revolucionário na época em que foi escrito”. Lembro dele em três ocasiões: nas resenhas de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde; A revolução dos bichos, de George Orwell e A Trégua, de Mário Benedetti. Outros se propõem a explicar a questão, que existe livros que 1) transcendem seu contexto ou 2) são fotografias irretocáveis dele. No primeiro caso, geram um debate profundo sobre o futuro, discussões acaloradas com teor político e, na maioria das vezes, pessimismo (Orwell, Bradbury, Asimov, Huxley). No segundo, uma identificação fortíssima unida à reverência generalizada pelo diagnóstico do “eu” e do “agora” (Tolstói, Bolaño, Camus, Jorge Amado). Quantos livros destes estão sendo escritos nesse momento? A impressão que fica é que os livros que mais falam sobre quem somos foram escritos há muito tempo. Isto levando em consideração que fugia da capacidade de qualquer escritor da época um esboço do que seria o meu contexto e o de mais de 7 bilhões de pessoas. O que os escritores de hoje têm feito com esta “vantagem”? Talvez a desperdiçando. E escrevendo sobre o que não nos pertence mais.

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