Três vozes, uma única voz: Nas tuas mãos, de Inês Pedrosa

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Nas tuas mãos apresenta a história de três mulheres que se sabem fortes apesar de tudo o que acontece com elas. Além disso, o romance também apresenta situações coletivas sobre a reconstrução do outro e de uma nação

inespedrosa

Nas Tuas mãos, de 1997, é o terceiro livro de Inês Pedrosa, autora portuguesa que já publicou inúmeros títulos. O romance é uma narrativa memorialística em que três mulheres – mãe, filha e neta – contam suas biografias por meio de um diário, de um álbum de fotos e de cartas.

A partir de experiências individuais, Jenny, Camila e Natália tentam, através da memória, reconstruir suas vidas. As personagens fazem isso esquadrinhando a história de Portugal do século XX. Muito além de relatar essa saga feminina, o romance se aprofunda nas questões sociais e históricas da época de cada uma delas. A reflexão, tão bem abordada no livro, origina-se justamente da memória. Cabe lembrar uma citação de Deleuze, em Diferença e Repetição, que diz: “Pode-se chamar de síntese ativa da memória o princípio da representação sob este duplo aspecto: reprodução do antigo presente e reflexão do atual.” (DELEUZE, 1998, p. 125)

Esse fluxo de memória e reflexão vem à tona com Jenny, representante da primeira geração, que fala de seu casamento com um homossexual, e sobre a necessidade de silenciar o fato. Ao mesmo tempo que Jenny é condizente com tal situação, ela protege seu companheiro, António, de ser vítima de preconceito e intolerância social. Segundo Anthony Giddens, em seu livro Mundo em Descontrole, a homossexualidade, como bem se sabe, era extremamente hostilizada. O autor escreve:

“As sociedades que foram hostis à homossexualidade em geral a condenaram como especificamente antinatural. As atitudes ocidentais foram mais extremas que as da maioria; menos de um século atrás a homossexualidade ainda era amplamente encarada como uma perversão e descrita como tal nos livros de psiquiatria.” (GIDDENS, 2000, p. 66).

Durante boa parte de sua vida, Jenny mantém-se aliada ao seu marido e ao parceiro dele, Pedro. Faz mais: cria a filha que Pedro teve em um caso com uma judia francesa. Jenny começa seu diário fornecendo informações sobre sua união, suas origens. Sobre seu casamento com António, diz:

“Se amasses outra mulher, o meu orgulho traído encontraria forças para deitar pazadas de terra sobre o buraco escuro do meu peito. Mas o teu amor proibido empurrava-te para o limbo trágico onde o meu amor por ti estava afinal condenado a viver.” (PEDROSA, 2005, p. 19)

Por ser judia, ela comenta: “Portugal só não morreu debaixo de seus contínuos deslumbramentos e ataques, porque os judeus lhe foram segurando as raízes.” (p. 31). Critica a mania de heróis dos portugueses: “Espezinhamos o ser a favor das aparências do poder, ela espezinha as aparências para encontrar o poder de ser. Uma peça de teatro substitui outra, e as mulheres sobem à boca de cena para repetir esse ancestral vício masculino da construção de heróis.” (p. 42). Ou quando ela escreve sobre a prisão da filha Camila e os danos que a tortura lhe causara:

“Quando voltou para casa, depois de passar um mês na prisão, aos 18 anos, a fúria ardia ainda no fundo de seus olhos cinzentos. Uma fúria escurecia, imóvel como um réptil, já sem um pingo de ingenuidade… Camila tinha sido apanhada em flagrante a distribuir panfletos subversivos, o tempo era de alvoroço… (p. 63).

A geração de Camila experimenta o horror da ditadura Salazarista. As características psicológicas dessa personagem, isto é, seu perfil emocional é um reflexo de sua conturbada e sofrida vida política. Camila representa a mulher de existência triste, assim como muitos outros em Lisboa desse tempo: viúvas de soldados, mães que perderam seus filhos, crianças que não conheceram seus pais, tudo fruto da ditadura. A mulher observa as pessoas e os lugares através da lente de sua máquina fotográfica pois, segundo a mesma, “o ato de fotografar tornou-se uma obsessão, quando a verdade deixou de existir para além da imobilidade das imagens”.

Por que Camila não sorria: “É estranho porque não gosto de sorrisos. sorriram-me demasiado, durante os interrogatórios. Primeiro sorriam-me com promessas… Depois irritaram-se e começaram a sorrir-me com ameaças…” (pág. 98). Por que Camila foi à África: “Eu viera para Moçambique como repórter da epopeia nacional. Devia mostrar a Portugal continental o gesto largo de nossos soldados, na sua missão civilizadora.” (p. 108).

Já Natália é concebida na praia de Xaixai; sua mãe Camila conhece um homem chamado Xavier, um negro simpatizante da Frente de Libertação de Moçambique, e é neste lugar que seu amado é assassinado. Natália, representante da terceira geração, é a personificação de nossa atualidade, ela traduz as relações mantidas à distância, a relação em que filhos pouco se comunicam com os pais, ou pouco se apegam a outros relacionamentos, é uma representante das “conexões” líquidas (referência ao Bauman).

Todas as informações que a narrativa nos fornece sobre Natália são das cartas que ela envia a Jenny. Através das missivas, percebe-se a íntima ligação, mesmo à distância, da neta com a avó. Nota-se a dificuldade de relação entre Camila e Natália. A troca de correspondências entre a jovem e a avó inicia-se em 1984 e finda em 1994. A jovem comenta sobre a busca de sua história, isto é, sobre descobrir quem foi seu pai, como viveu e como morreu. São nas missivas dessa personagem que várias críticas são feitas a Portugal, sobre os males que essa nação causou a países do continente africano. Ela escreve:

“Não sonhava que pudesse existir tanto sofrimento. O quotidiano de Moçambique é apenas inimaginável. À chegada, por detrás dos vidros de um automóvel, Maputo apresenta-se como capital de um possível futuro, entretanto arquivado, experiência suspensa, envolta nas cores esfaceladas e um passado irreal. Quando se para para olhar de perto, o cenário romanticamente surreal adquire contornos dantescos da hiper-realidade.” (p. 206)

Ou:

“Tudo tem um preço, mas a vida depois da guerra parece valer muito pouco. As televisões alimentam-se de sangue rápido, as pessoas comovem-se com a miséria vistosa, a fome de barriga inchada, os tiros em fogo preso. Em Moçambique, pelo menos, por agora, o espetáculo acabou, o Ruanda substitui-o com fulgor, é para lá que se movem as receitas da bilheteria.” (p. 207)

Nas tuas mãos é a narrativa sobre três mulheres que, apesar de tantos infortúnios, sabem-se fortes; é uma história de experiências individuais, mas também coletivas. É um livro sobre mulheres, mas é mais: é um livro sobre o ser humano. Jenny, Camila e Natália representam a reconstrução de si mesmas, a reconstrução dos outros, a reconstrução de uma nação.

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2003.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.

PEDROSA, Inês. Nas Tuas Mãos. São Paulo: Editora Planeta, 2005.

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