Certa vez, ao final de um ano letivo, como eu sempre fiz com os meus alunos, resolvi promover uma festinha de encerramento do ano e um amigo secreto entre a turma. Até aí tudo tranquilo, mas no dia do evento…
Eu, com a minha brilhante cabecinha, resolvi dar um livro para a menina que eu ‘tirei’ de amiga secreta. Decidi não dar um dos livros que eu havia escrito, não queria deixar a impressão de que estava ‘promovendo’ a mim mesma e decidi dar um clássico infantil: Alice no país das Maravilhas. Pensei cá com os meus botões, que a menina de 10 anos iria adorar ter o seu próprio exemplar (novíssimo e de capa dura), já que várias vezes havia visto a aluna lendo um exemplar desse livro, mas bem velhinho, que tínhamos na sala de aula.
Foi um engano.
A maioria dos alunos deram caixas aos seus colegas, outros deram balas, outros brinquedinhos e eu ali, com o exemplar da Alice em mãos, torcendo para chegar a minha vez de revelar a minha amiga secreta. Eu estava ‘louca’ para ver a carinha de felicidade que a aluna faria ao abrir o embrulho feito com carinho e ver que dentro dele havia uma bela história de sonhos e fantasia somente para ela.
Foi um engano.
Assim que a menina abriu o embrulho o seu olhar ficou triste e o sorriso dos seus lábios desapareceram. Ela não tinha gostado do presente.
– Um livro? – perguntou a aluna ao ver o seu presente.
– Sim, é um exemplar de Alice no país das maravilhas! – falei alegre.
– Mas é um livro?
– Sim – nem sabia mais o que falar.
Eu não estava entendendo a reação daquela menina. Afinal, o exemplar era belíssimo, todo ilustrado, de capa dura e novinho em folha. Os demais colegas foram curiosos até ela. Alguns pediram para tocar no livro, demonstrando curiosidade e ciúmes, outros queriam pegar a obra a qualquer custo, quase arrancando o livro das mãos da menina.
– Um livro, profe? – indagou, novamente, a menina.
– Você não gostou?
– Não – respondeu a aluna.
Aquela resposta foi um choque para mim. Queria perguntar por que ela não havia gostado do presente, mas fiquei sem coragem. O que poderia vir de resposta depois daquilo tudo que eu havia ouvido dela?
Nesse instante, outra menina, mais desinibida, chegou até a minha amiga secreta e perguntou:
– Se você não gostou então dá pra mim.
– E eu vou ficar sem presente?
– Ah… Então pega essa caixa de bombons que eu ganhei – dizendo isso a outra menina alcançou a caixa de bombons à colega.
– Não! – gritei fora de mim.
– Não? – indagou a minha a amiga secreta. – Por que, não?
A única coisa que eu falei naquele momento foi:
– Porque um livro vale mais do que bombons.
– Ah, é? Vale quanto um livro? – perguntou a aluna, ainda com o exemplar nas mãos.
– Ah… Não sei ao certo. – nesse momento, eu havia recobrado o juízo e, com toda a minha bagagem de leitora, professora e escritora, consegui estragar mais a situação – Mas um livro é para a vida toda, para você ler e viajar, sonhar e…
– Mas não dá para comer, professora. – respondeu a aluna.
– Como?
– Lá na minha casa somos muitos e ninguém tem dinheiro pra comprar presentes. Sou a única que vai ganhar presente.
Eu ainda não estava entendendo a linha de pensamento da minha aluna até ela concluir:
– Pensei que eu ganharia uma caixa de bombons como todos os outros. Então eu poderia levar pra casa e dar para a minha família na noite de Natal. Seria a nossa ceia. Além do mais, ninguém mais sabe ler lá em casa, somente eu. De que vale então somente eu poder viajar e sonhar enquanto os outros permanecerão tristes e com fome?
E, para fechar com chave de ouro ela falou:
– Não quero algo sem utilidade pra vida toda. Quero uma caixa de bombons que dá pra comer na noite de Natal.
Bem, acho que não precisa dizer mais nada.
Ler é excelente… Alimenta a alma. Mas quando o corpo sente fome… Dói e machuca. Essa dor afasta qualquer possibilidade do letramento do ser.
Quando o corpo está vazio, a alma desnutrida não sente fome.