A natureza múltipla em Adélia Prado

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Aos 78 anos, a poeta Adélia Prado continua a encantar com seu jeito único de descrever grandiosamente as pequenas coisas, em uma espécie de exercício metafísico das palavras e das coisas, e de abordar temas tão duros como a morte e a culpa com incrível finesse.

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Parece que tudo começa já pelo nome do lugar onde nasceu: Divinópolis. Foi nessa cidade de nome sugestivo que nasceu uma mulher que fez da poesia sua poderosa ferramenta ontológica para o desvelamento do mundo e da natureza humana – grosso modo, no existencialismo do filósofo Martin Heidegger, o desvelamento é como a verdade se deixa ver por inteira, como uma janela que antes estivesse por trás de uma cortina e que é então revelada quando os tecidos dela se afastam; esse desvelar é possível somente se houver um ser descobridor, ou seja, alguém que esteja em busca dessa verdade. Uma mulher que narra com cuidado e extrema sensibilidade os mistérios que dormem nos afazeres domésticos e nas entrelinhas do êxtase é esse “descobridor”.

Não seria exagero dizer que foi com Adélia que aprendi a amar a mulher em sua plenitude. A profunda complexidade e o sagrado feminino não me foram apresentados por tratados sobre símbolos ou escritos etnográficos. Foi ela, essa divinopolitana, que desde Bagagem, seu livro de estreia, harmonizava as esferas do sexual e sagrado de um jeito singelo e arrebatador. O tom erótico de muitos poemas chega a desconcertar quem procura em seus versos os extremos entre a natureza e a graça agostiniana.

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Ao contrário do que haveria de supor qualquer parco conhecimento sobre o pensamento cristão mais sério, o corpo comunga com a vida de maneira inextrincável e a sua negação é como negar também a natureza divina da qual o homem advém, mas da qual está irrevogavelmente separado. O embate moral entre desejo e culpa é diluído na poética adeliana quando esta é voltada para as miudezas do cotidiano e da vida conjugal, sem com isso perder a sua força e estruturação nas veredas da fé e da sexualidade. Para ela, a poesia é um fenômeno religioso por natureza e, da mesma forma que a fé, traz consolo e alegria para nossas vidas. Os pessimistas radicais que me perdoem, mas a beleza, aquele mesmo padrão que imperou na Grécia Antiga e que moldou nossa civilização, ainda é e talvez sempre seja essencial para a nossa ainda tão frágil espécie. Se levarmos em conta o que Blaise Pascal dizia sobre a insuficiência da razão diante das “razões do coração”, encontraremos em Adélia um desenho perfeito desse vasto universo da condição humana.

Em uma entrevista para o Estadão, a poeta fala sobre a ligação entre religião e poesia da seguinte forma:

No texto de um poeta ateu, o substrato de sua poesia é o mesmo no de um poeta crente. Porque o fenômeno poético é religioso em sua natureza. A poesia, independentemente da crença ou não crença do poeta, nos liga a um centro de significação e sentido, assim como o faz a fé religiosa. Por isso é que a poesia é tão consoladora, dá tanta alegria. Minha formação é religiosa, confesso o que creio e é impossível que nossas profundas convicções desapareçam quando escrevemos. Seria esquizofrênico. Mística e poesia são braços do mesmo rio. Deus me deu o segundo, mas a fonte é a mesma, o Espírito Divino. A despeito de si mesmo, o poeta ateu entrega o ouro em sua poesia. É simples, rigorosamente ninguém é o criador da Beleza (poesia). Ela vem, eu diria como Guimarães Rosa, da terceira margem da alma. O poeta é só o “cavalo do Santo”, queira ou não. Às vezes, somos tentados a desistir quando descobrimos que ela, a poesia, é muito melhor que seu autor. É a tentação do orgulho. Que Deus nos livre dela.

Em Miserere, seu último livro até o momento, a autora navega por águas mais turvas, calcada na experiência do envelhecimento e da morte, com um lirismo afiado e humores mais sérios. No entanto, ainda é indubitavelmente Adélia, com todo o seu brilho e singularidade, uma força que move a palavra para o céu da boca – terreno sagrado mais próximo que se estende no campo daquilo que é dito. Em seus versos o leitor encontra chaves e senhas para adentrar espaços onde é possível dialogar alma e carne, desejo e moral, uma experiência que nos aproxima uns dos outros e de nós mesmos na medida em que descobrimos os desafios de nossa tão bonita e decadente natureza.

Para encerrar, deixo o vídeo de uma bonita entrevista concedida para o programa Imagem da Palavra, onde Adélia aborda temas importantes e recorrentes da sua poesia:

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