Autor de contos, novelas e textos teatrais, Gógol transita pela temática do sarcasmo, da ironia ácida e do Realismo Fantástico. Um grande precursor da Literatura Russa do século XIX, que inspirou gente como Kafka e Dostoiévski
“Todos nós descendemos do Capote.”
– Dostoiévski
Em 20 de março de 1809 nascia na Ucrânia, então província do Império Russo, Nicolai Gogol. Ainda pequeno, estudou no Liceu Niejine, lugar onde se mostrou ser um aluno “mediano”, porém surpreendia professores e colegas com o seu talento para a atuação. No ano de 1830, em Petersburgo, tenta, sem sucesso, ingressar na carreira de ator. Com publicações em jornais, aos poucos, torna-se conhecido. Em 1832 (não se sabe exatamente), é apresentado a Puchkin, que será seu grande amigo e incentivador literário.
Gogol escreveu contos, novelas e textos teatrais. Sua escrita transita pela temática do sarcasmo, da ironia ácida e do Realismo Fantástico. O autor ucraniano foi o grande precursor da Literatura Russa do século XIX. Em O ponto de vista de Gógol, de Otto Maria Carpeaux, lê-se:
Gogol é o fundador da grande literatura russa do século XIX. Do Capote descende toda aquela literatura de compaixão algo sádica de Dostoiévski e a sensibilidade cinzenta de Tchekow- que assim como o próprio Gogol chorava atrás do riso do humorista. (página 107)
Autor de grandes clássicos como O Nariz, Diário de um Louco, O Capote e Almas Mortas, Gogol não influenciou somente os grandes literatos russos, mas também escritores de outras quadras, sendo um deles, nada mais nada menos, que Kafka, que muito se guiou pela obra do ucraniano. No ensaio, Um comentário sobre o Processo de Kafka, o crítico George Steiner escreve:
É na ficção russa- nos contos de Gogol e nos romances de Dostoiévski, dois dos autores que mais influenciaram Kafka- que o empregado de escritório torna-se um arquétipo: é ele aquele ser que, apoquentado até a loucura por seus superiores petulantes, pela monotonia cinzenta de seu trabalho diuturno e pela pobreza, vinga-se do destino infernizando a vida dos infelizes que necessitam dos seus arcanos serviços. (página 248)
É na atmosfera de opressão e angústia, característica recorrente na obra Kafkaniana, que o leitor se depara ao ler O Capote. A novela narra a história de Akaki Akakiévitch, funcionário público de “um certo ministério” de Petersburgo. O protagonista é um solitário e tímido copista de processos. Akakiévitch tem aproximadamente 50 anos e é “pequeno, raquítico, ruivo, testa calva”. É ignorado por quase todos da repartição, e seus superiores o tratam com frieza: “O primeiro subchefe que aparecia lhe atirava as papeladas diante de seu nariz sem nem mesmo ter o trabalho de dizer: -faça o favor de copiar isto, ou: – eis aí um processozinho da melhor qualidade, como é uso entre burocratas de boa educação.” (página 12)
O funcionário não ousa questionar nada, sequer olha para o chefe, apenas cumpre sua tarefa com resignação, o que leva seus colegas a esculachá-lo, ou seja, é motivo de chacota e riso na repartição. Relativa à submissão e conformismo de Akakiévitch, lemos, em ensaio de Carpeaux, a seguinte passagem sobre as personagens de Gogol:
As personagens de Gogol não são mais reais do que as suas paisagens e cidades; assemelham-se antes a bonecos, envolvidos em turbilhões de riso elegíaco e frenético. Todos eles burocratas e comerciantes, vítimas e escroques, são títeres pendentes dos fios duma máquina que é o próprio Estado, definido como homem ridículo que todo dia, à hora marcada, aparece numa janela, aceita a homenagem dum toque de tambor, e desaparece, para, no dia seguinte, voltar com a pontualidade estúpida dum mecanismo de relógio.” (página 109)
Akaki, esse títere, enfrenta o inverno rigoroso que se instala na cidade. O solitário homem tem um único casaco, vestimenta de aspecto sujo e todo remendado. Numa de suas caminhadas, sente insuportável frio nas costas e nos ombros; repara que o tecido de sua roupa está excessivamente gasto. Resolve levá-lo ao ébrio alfaiate Petrovitch, que lhe diz não existir conserto para tal e sugere ao homem investir em um novo capote. O protagonista reluta, quer apenas alguns remendos, mas o alfaiate nega-se, veementemente, em costurá-los. Akaki fica desconsolado, pois não possui os 80 rublos suficientes para a confecção. Então, durante alguns meses, o funcionário economiza para poder confeccionar o sobretudo. Como arrecada tal valor? Reduzindo suas despesas: caminha devagar para poupar a sola dos sapatos; evita usar roupas brancas, para não gastar na lavanderia; não toma mais chá e nem acende velas à noite; até deixa de comer vez e outra. Agora, seu alimento é a expectativa de um novo capote.
Finalmente, Akakiévitch tem em mãos o dinheiro e consegue pagar pelo casaco. Agora, nosso “herói” se olha e sorri, está mergulhado num gostoso devaneio. Vai para o ministério e não passa despercebido: todos os colegas percebem a roupa nova e resolvem fazer uma festa em homenagem a Akaki e seu casaco. O funcionário não quer de jeito nenhum, até que um colega diz: “Pois bem, sou eu quem dará a festa. Convido a todos para que venham esta noite tomar chá em minha casa, pois hoje a festa também é minha.” (página 34) Sem ter como escapar, nosso homem se vê obrigado a comparecer a tal “homenagem”.
A caminho da recepção, Akakiévitch, invadido por um sentimento “inédito”, observa coisas que nunca reparara:
Entre os transeuntes, cujo número aumentava sem cessar, surgiram senhoras elegantemente vestidas e senhores com golas de castor. Os pequenos trenós de madeira entrelaçada, cobertos com pregos dourados, logo deram lugar a soberbas carruagens: grandes trenós envernizados, protegidos por peles de urso e conduzidos por cocheiros usando bonés de veludo framboesa. Ricos landaus com poltronas ornamentadas que faziam ranger a neve sob suas rodas. Akaki Akakiévitch analisava todas estas coisas como se as visse pela primeira vez, pois desde há muitos anos ele não saía à noite.” (página 35/36)
Quando chega à casa do colega, todos o “louvam”, mas logo é esquecido. Os homens riem, bebem, jogam e Akaki sente-se “deslocado”. Resolve sair à Francesa, uma vez que não se entrosa ao ambiente. Caminhando na escuridão, é abordado por três homens que lhe roubam o capote. Akaki ainda tenta implorar pelo traje, mas é em vão. O homem é agredido e mal tem forças para pedir socorro. O funcionário volta arrasado para casa. No dia seguinte, vai ao comissariado prestar queixa e não é atendido no ato, pedem que volte mais tarde. Ao retornar, horas depois, ainda tentam barrá-lo, mas Akakiévitch é firme pela primeira vez em sua vida. Quando começa a relatar o ocorrido ao comissário, parece que o criminoso é ele. O homem interroga-lhe: “por que voltou para casa tão tarde? de onde viera? De algum lugar suspeito por acaso?”(página 42)
O pobre homem recua, pensa ser melhor não levar o caso adiante. Fica tão abatido que não vai trabalhar. Na manhã seguinte, ruma à repartição com seu velho capote roto. Fala aos colegas sobre o ocorrido; uns debocham; outro sugere que procure por um certo “senhor influente”, que poderá ajudá-lo. Ao procurá-lo, Akiki encontra um homem grosseiro, que abusa do poder e o chama de subversivo e petulante. Nesse ponto, o personagem escuta aquela velha máxima:”Você sabe com quem está falando?”,isto é, ouve o famoso carteiraço, uma das práticas mais comum de intimidação.
Akakiévitch retorna para casa e fica doente, a proprietária do prédio chama um médico que sentencia poucos dias de vida ao homem. Akaki cai num delírio angustiante até expirar. Tal qual sua vida, sua morte também é solitária. Akakiévitch ganha um funeral pobre e vazio. Tempos depois, ouvem-se vários relatos de pessoas que têm seus casacos roubados por um espectro, o fantasma ladrão é reconhecido por um velho colega do ministério. Sua última aparição ocorre quando rouba o capote do “senhor influente” que o humilhara em vida, aquele que disse: com quem pensa que estás falando?
Nicolai Gogol, um dos maiores expoentes da Literatura Russa, escreveu com maestria a respeito dos problemas sociais de sua época. O cidadão do capote representa a frágil condição humana, num mundo que sobrevive de poder, aparência, individualismo, monotonia e futilidade. A transição de uma narrativa realista à fantástica só revela, com um fino sabor irônico, a condição de várias cópias de Akakis pelo mundo: pessoas que vivenciam a morte em vida, ou seja, seres invisíveis aos olhos dos outros, fantasmas no meio da multidão.