Um testemunho pessoal de como Nietzsche pode influenciar na formação de uma pessoa.
Segundo os gregos, todo ser humano vem de fábrica acompanhado de um daimon, de um ser sobrenatural em stand-by que, para além do bem e do mal, influência a fortuna de quem teve a sorte duvidosa de ser enviado à Terra. Assim, em momentos de grande tribulação como o primeiro dia na escola, a primeira decepção amorosa ou a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida, sofreríamos as traquinagens fatalistas de um ser invisível que em momentos cruciais da nossa história nos entregaria a caneta certa para cada palavra a ser escrita no livro da vida.
A incontestável sabedoria popular nos ensina que esses daimons agem com muito mais frequência em nossa infância. Não apenas salvando de forma milagrosa crianças num acidente automobilístico entre uma carreta e uma moto (principalmente se ela estiver na carreta), mas acima de tudo jogando migalhinhas de maná para o menino faminto a fim de que, de grão em grão, alivie a fome que é perseguir e “tornar-te aquilo que tu és”. Outros, menos místicos como James Hillman (psicólogo junguiano de fama internacional) afirmam que é na infância que nosso cérebro começa a processar sugestões que moldarão a personalidade do Ser na vida adulta (a despeito de todo desserviço dos pais).
“A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.”
É como se fôssemos ao mesmo tempo escultor e escultura, sendo a infância o período mais fértil para que as intuições acesas por nosso daimon sejam totalmente iluminadas para que venha à luz um futuro menos obscuro. Em minha experiência, posso dizer que as sementes plantadas pelo meu suposto daimon na infância germinaram em árvores relativamente fortes e robustas, das quais obtive madeira suficiente para o barco que usei ao atravessar, em direção à vida adulta, esse tempestuoso mar chamado “adolescência”.
Como sabem, um navegante que se preze faz da bússola relógio de pulso. E, a despeito de ser um instrumento árabe, minha bússola durante essa travessia foi fabricada na Alemanha, na cidade de Röcken no dia 15 de outubro de 1844. Leva o nome de Friedrich Willhelm Nietzsche e o indico como guia para todos aqueles que se sintam perdidos. Vocês vão se sentir mais perdidos ainda, porém, com o agravante de perceber o fato e ainda por cima dançar com isso.
Todos a bordo?
O nascimento da tragédia
A primeira morte a gente nunca esquece. O Titanic, por exemplo, costumo dizer que é a tragédia que simboliza o fim da Belle Epoque, enquanto o desfecho da minha bela época é representado pelo naufrágio da vida de minha avó. Enquanto minha mãe trabalhava nessa época fora do Brasil e meu pai em outra cidade, minha avó materna foi minha tutora fortalecendo assim um laço familiar que já era muito forte desde meu nascimento. Dona Vilma não era apenas mais outra velhinha religiosa; era uma estudiosa bíblica e uma exegeta brilhante, influenciando e aconselhando outros ministradores do cristianismo.
Aí um dia ela teve câncer e morreu. Mas antes, claro, sofreu muito por isso. Inclusive acreditou que não deveria se preocupar com uma segunda possível aparição desse mal e baseou toda sua blindagem patológica nas traiçoeiras águas da fé. E então ela se afogou, e muito, muito longe da praia. Parece que o “médico dos médicos” também era do SUS. Onde esteve esse Deus a quem ela dedicou sua vida na hora em que mais precisou? Sempre fui fascinado por livros e por filosofia (aprendi a ler aos quatro com as enciclopédias do meu pai e aos oito já tinha devorado O Banquete, de Platão) e, no alto de minha pueril revolta aos céus, lembrei daquele autor que tinha aquela frase proibida na qual toda vez que diabolicamente meus olhos esbarravam, mais do que depressa eu os fechava com medo de me apaixonar pela pecaminosa sedução do conhecimento. O autor era Nietzsche; e a frase era:
“Deus está morto.”
Revisitei a frase e conheci o poeta. Esvaziei os pulmões e me deixei tragar. A Gaia Ciência — livro onde a frase aparece pela primeira vez — me absorveu por completo. Este, foi o nome do último livro de Nietzsche sob sua perspectiva positiva, sendo recheada por uma escrita leve e amena. Enquanto meu espírito em chamas ardia em vontade por queimar todos os deuses de todos os céus, cada um dos 383 aforismos do livro funcionava como um balde de água fria.
Numa leitura superficial, aprendemos com o filósofo que o niilismo nascente da dualidade entre essa vida e o além, motiva os pobres mortais sofredores a aguentarem a lida da vida terrena ansiando pelo renascimento ou colheita dos bons frutos em um pós vida qualquer. Mas, como disse, essa é apenas uma leitura superficial.
O pensamento de Nietzsche encerra em si um paradoxo que apenas os grandes conhecedores da alma humana poderiam ensinar: calmaria na tempestade e bombas atômicas durante o jantar. E enquanto eu ensaiava as primeiras tentativas de implodir o mundo, assim falava Nietszche:
“Eu vos digo: se deve ter um caos em si, para poder dar à luz a uma estrela dançante”
Diante dos acontecimentos desse período específico da minha vida, o caos da dúvida era constante. Qualquer um que passa por momentos difíceis (de quem perde a carteira até a quem perde um filho), contesta os fundamentos de sua vida e pode arquitetar com maestria a mais pura rebeldia. E isso é perigoso como o fogo: assim como nos aquece e encoraja, nos queima e amedronta. Há de se ter conhecimento para bem manejá-lo. E Nietzsche é um bom manual de instrução para construção de sua fogueira.
Ele não vai alimentar seu medo travestido de revolta — jamais ele iria engrandecer sua fraqueza. Afinal, Prometeu só renegou os céus a favor do homem pois havia muito fogo envolvido, assim como um investidor só adquire dívidas com a intenção de liquidá-las em três vezes mais. Você que sofre e direciona sua dor apenas para a gula de Cronos, está disposto a aquecer esse deserto de gelo com o mais puro brilho de uma estrela dançante? Na natureza nada se desperdiça, e até o seu almoço — depois de algumas horas — pode virar o adubo da colheita do próximo jantar, de modo que a energia caótica proveniente de nossas frustrações pode ser direcionada à transcendental força criativa na contramão do Eterno Retorno.
O pecado da leitura superficial de Nietzsche é tratá-lo como combustível para nossas próprias frustrações. Quando ele te acusa de assassino de Deus não é para você se orgulhar de ser o coleguinha mais radical do recreio enquanto arruma o frango e as velas pretas. Mas sim para nos preparar para que, quando a conta do niilismo chegar à residência dos moradores da Liberdade, estejamos prontos para trocarmos a angústia pelo amor à vida, pelo destino como ele é, para nos reconciliarmos com nossa lida e buscar na vida o estímulo antecedente a todo gozo. Afinal, toda verdade absoluta é uma muleta metafísica por excelência.
Passar bem.