Noite, obra publicada em 1954, mescla mistério e personagens alegóricos em uma jornada pelo submundo de uma grande cidade
As noites de uma grande cidade podem ser palco dos fatos mais estranhos ou extraordinários. Na noite certa, até mesmo as mais desvairadas histórias tornam-se plausíveis. Em 1954, o escritor Érico Veríssimo nos apresentou uma dessas noites, um mistério com personagens alegóricos que revela a lógica singular, hábitos e as tramas de uma sociedade que permanece acordada madrugada adentro.
Noite traz como protagonista um sujeito desmemoriado, chamado de Desconhecido (ou homem de gris). Vagando sem rumo por ruas e bares da cidade, ele acaba caindo nas garras de dois indivíduos habituados com a vida noturna: um anão disforme e seu parceiro, um homem de aparência distinta, a quem chama de “mestre”. Juntos, os três empreendem uma jornada que tem entre seus diversos cenários um prostíbulo, um hospital e um velório. Sempre envolvidos em uma atmosfera sombria, o trio desvela a face suja das personagens encontradas pelo caminho.
Em meio às desventuras, o Desconhecido vive um dilema próprio: a busca por sua verdadeira identidade. Essa é uma das formas pela qual se revela o aspecto pós-moderno da obra, permeada por reflexões existencialistas do protagonista: “Quem sou? Onde estou? Que aconteceu? Não era com a mente que ele fazia estas perguntas angustiadas, nem elas chegavam a articular-se em palavras e frases. Essas urgentes indagações em torno de identidade, tempo e espaço estavam subterraneamente contidas naquela ânsia aturdida. Era como um homem que, despertando em quarto escuro, procurasse às cegas num terror quase pânico, uma janela para o ar livre, para a luz.” (p. 2)
A construção dos personagens é um dos pontos fortes da obra, todos sem nome, mas representando vozes da nossa sociedade. O anão é um dos que mais surpreende, num misto de atitudes grotescas e demonstrações de elevado senso crítico, ele ofende a todos com quem se relaciona lançando agressivamente verdades dolorosas. Parece uma caricatura do povo, que, num momento, rechaça a violência e, noutro, promove linchamentos. No trecho a seguir, ele fala sobre si ao Desconhecido:
“…Detesto a virgindade, o pudor me dá náuseas, os chamados homens de caráter me matam de tédio. Sou um sujeito sincero, coisa que muito poucos podem dizer de si mesmos…” (p. 21)
O “mestre”, com um “quê” de diabo, a todo momento, lança sobre o Desconhecido as tentações da noite. O personagem também mostra perspicácia em suas falas: “ — Olhe para esses homens e mulheres — continuou o homem do cravo vermelho. — Nenhum deles está completamente vivo. Todos já começaram a morrer. Essa pobre gente não só compra coisas a prestações como também morre a prestações…” (p. 42)
A história é obscura e nos leva a uma leitura tensa, intensa, tanto pelo mistério em torno do protagonista, que se mantém até o final do livro, quanto pelo relacionamento conturbado entre os personagens, transitando entre a violência, o sarcasmo e o cinismo, mas sempre abertamente movido por algum interesse sórdido. Noite nos lembra as várias facetas da nossa sociedade. Obra obrigatória para admiradores de Érico Veríssimo e da literatura brasileira.