Mais uma vez me deparo com a seguinte questão: até que ponto a vida pessoal está interligada com a ficção? Segundo Marcelino Freire, o personagem central de Nossos Ossos, seu primeiro romance, tem, sim, traços idênticos aos de sua vida. No entanto, o enredo é quase todo inventado, seu romance não é autobiográfico.
Marcelino Freire é filho caçula em meio a uma família de vários irmãos e nasceu em nasceu em Sertânia (PE). No início de 1990, mudou-se para São Paulo em função de um amor, que começou a declinar logo que colocou os pés na cidade. Até firmar-se como escritor, passou por inúmeros empregos e morou, inclusive, de favor.
Nossos Ossos narra a história do dramaturgo Heleno, que tem nove irmãos e morava no nordeste brasileiro. O nordestino foi embora de Recife para São Paulo em busca de reconhecimento como dramaturgo e pelo grande amor que tinha por Carlos, na bagagem: esperanças e sonhos. Após chegar à grande metrópole, Heleno percebe que fora abandonado e obrigado a enfrentar, sozinho, a gigantesca cidade.
Em São Paulo, Heleno cresce profissionalmente, mas em relação aos sentimentos parece jamais esquecer que Carlos o abandonou. Passa a viver uma vida mundana, relaciona-se com diversos garotos de programas e contrai, inclusive, o vírus HIV. Conhece Cícero – ou Boy, como era geralmente chamado -, por quem passa a desenvolver certo carinho. O jovem, segundo ele, parecia diferente, sem o ar de malandro e bandido como tinham os tantos outros michês que conheceu. Após ser informado da morte misteriosa de seu boy, o dramaturgo faz de tudo para resgatar o corpo no necrotério e levá-lo de volta para a família, em Poço do Boi (PE).
[…] vim para São Paulo atrás de um corpo vivo, volto agora, para a minha terra, carregando uma sombra, um espírito defunto, algo em mim ficou extinto, inânime, à boca do túmulo.
Heleno se passa por detetive a fim de investigar a morte de Cícero e descobrir o paradeiro de sua família, e em meio as buscas, são retratadas cenas paulistanas, nas quais transitam travestis, michês, taxistas e policiais. A morte do boy é vista por Heleno como uma espécie de impulso para que ele tomasse consciência dos usos que fez da vida: “dorsos nus, jovens putos, à venda, como uma mercadoria, exposta”.
O protagonista passa a encarar a entrega do corpo de Cícero à família como se fosse esta a sua missão na terra, para que, só depois, ele pudesse descansar em paz na sua cama, no quarto 48.
Em Nossos Ossos a escrita permeia um processo de escrita às cegas, marcada ritmicamente por vírgulas, sem cair no descompasso narrativo. Além de tudo, Freire é dono de uma escrita sintética e concisa, é perceptível o seu trabalho quase que arquitetônico com as palavras. Nenhuma palavra é desperdiçada, a cada novo trecho é apresentado um novo acontecimento.
Graças ao ritmo narrativo, ao lermos cada capítulo parece que estamos fazendo uma prece. Sim, é como se estivéssemos rezando. Não só isso, rezando e montando, a cada capítulo lido, um esqueleto com seus mais distintos ossos. Montamos um esqueleto de um copo estranho.
Nossos Ossos
Autor: Marcelino Freire
Editora: Record
Quanto: R$ 28