Notas sobre televisão, filmes e literatura

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Breves, mas certeiras palavras sobre Stranger Things, filmes do Tarantino e Terra Sonâmbula, de Mia Couto

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1. Acho que já li uma boa dezena de textos sobre Stranger Things. Essa rapaziada do Netflix sabe mesmo como analisar mercado – não sei nem se essa seria uma definição que especialistas da área de marketing dariam. De minha parte, posso dizer que gostei muito. Assisti aos oito episódios num sábado chuvoso. Essa voracidade é algo que ainda me assusta. Alguns dizem que sou um ressentido inadaptado aos novos tempos. Tudo bem, pode ser. Sou de um tempo em que tínhamos que esperar sete dias para ver o próximo episódio de Street Fighter no SBT – correndo o risco de ficar a ver navios dependendo da extensão de um programa dedicado aos caminhoneiros nos domingos de manhã.

2. Se tem uma coisa que me agrada nas obras de arte são colagens, homenagens e referências a obras que se tornaram clássicos. É por isso que sou um grande fã dos filmes do Tarantino – já aproveito para pedir desculpas aos leitores que já leram meus textos anteriores por citar novamente essa lindeza de diretor. Kill Bill, Pulp Fiction, Os Oito Odiados. Todos eles apresentam um mosaico de recortes, coisas que habitam o imaginário de um ex-balconista de locadora que viu de tudo em matéria de cinema. Em Stranger Things, os irmãos Duffer homenageiam filmes e séries oitentistas como E.T., The Thing, Evil Dead. É só olhar para os pôsteres colados nas paredes das casas dos garotos mais nerds e legais do universo. Isso pra não falar da trilha sonora liderada por The Clash no nível da narrativa, músicas que fazem parte da vida dos personagens.

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3. A literatura, claro, também dialoga e homenageia a si mesma. Mia Couto que o diga. Neste ano, o livro Terra sonâmbula está pela segunda vez na lista de obras sugerida pela Unicamp, um dos maiores vestibulares do país. É uma pena que seja algo relativamente imposto. Com a tensão inerente à concorrência do vestibular, fica difícil imaginar que algum estudante sentirá prazer em ler algo que pode definir seu desempenho na prova. Foi por causa dessa lista que cheguei ao livro. Durante minha graduação em Letras, muito ouvi falar do moçambicano Mia Couto, mas sempre passei batido.

4. Em tempo: assim como muitos, acho uma grande sacada inserir uma obra da literatura africana num vestibular de grande audiência. Afinal, Brasil e Portugal não são os únicos países a falarem português. Terra sonâmbula é um bom modo de saber mais sobre Moçambique. Num contexto duma guerra anticolonial e civil, o romance apresenta a história do velho Tuahir e do menino Muidinga, sujeitos andantes que tentam sobreviver aos horrores que assolam seu país. Próximo a um ônibus que foi incendiado, encontram uma mala contendo os cadernos de Kindzu, conterrâneo que, assim como eles, está a fugir do conflito das milícias. A leitura dos doze volumes manuscritos por esse desconhecido fará com que Tuahir e Muidinga se distanciem de sua realidade e vejam uma ponta de esperança no final da estrada.

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5. A literatura exerce seu poder viciante sobre eles. Assim como o telespectador que não consegue desgrudar de Stranger Things, Tuahir sente-se incomodado quando não ouve as leituras feitas por Muidinga. O historiador francês Jacques Le Goff, no livro História e memória, aponta a evolução das sociedades puramente orais para as que desenvolveram formas de escrita. Em certo momento, Muidinga faz o movimento contrário: decora o que leu e verbaliza as coisas guardadas no seu palácio da memória para seu tio de consideração, assim como fazem os foragidos criados por Ray Bradburry em Fahrenheit 451.

6. Lançado em 1992, Terra sonâmbula é um romance em abismo que finca suas raízes na tradição oral de contar histórias e nas mitologias tribais africanas. Kindzu se mostra como um Ulisses que, desprovido de Homero, registra e narra por conta própria sua epopeia.

 

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