Gilles Deleuze, à esquerda, e Jack Kerouac, à direita
Palco
Final da década de quarenta do século passado, o Moloch-Binário, ainda há pouco destruído pela segunda grande guerra, outra vez se reorganiza, ele sempre se reorganiza. Agora não mais dividido entre as potências do eixo e os aliados, mas entre capitalismo e comunismo, stalinismo e mccarthismo, E.U.A e U.R.S.S, técnica e técnica. Em ambos os lados, o ambiente sufoca e os jovens agonizam emparedados pelo aparelho estatal, pela atmosfera irrespirável, a burocracia, o concreto, o aço, a cor cinza. É preciso traçar uma linha de fuga, pegar uma corrente de ar fresco, respirar outra vez. A história é sempre aporética, rota que levara a humanidade à sua pior guerra e a Hiroshima. “Geografia contra História.” (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p.28). É necessário encontrar uma fuga geográfica, redescobrir o Oeste, não importa que não haja um lar, a própria guerra destruíra a possibilidade de uma casa. Não importa que não exista pódio de chegada ou beijo de namorada. Não importa, para Kerouac, que a razão vele a face de Deus: a vida é uma estrada (de ouro) que vai do oco para o vazio – goodbye yellow brick road -, mas no caminho sempre se pode tomar um sorvete duplo, uma cerveja, bater um papo, encontrar uma garota mexicana, fazer festa, pegar nova carona, cair na farra com os amigos:
We were on the roof of America and all we could do was yell, I guess – across the night, eastward over the Plains, where somewhere a old man with white hair was probably walking toward us with the Word, and would arrive any minute and make us silent.(KEROUAC, On the road, p.49).
O livro On the road, de Jack Kerouac é isto: o registro das perambulações de um jovem pelos Estados Unidos da América, em busca apenas de liberdade, amizade e encontro. No entanto, aqui a palavra não é o túmulo da experiência, mas sua extensão. Anseio de condensar o rio numa única gota e fazê-la correr. Não, ainda além, não é o que reflete, mas o Fora, o outro lado do espelho: anseio de condensar o lençol freático numa única gota e fazê-la dançar.
Nosso intuito é estabelecer uma evolução a-paralela, núpcias mesmo, entre os conceitos de Gilles Deleuze e a literatura de Jack Kerouac, mais precisamente a obra-prima On the road. Mostrar como Kerouac gagueja e se envolve num devir-minoritário, e se desterritorializa para se reterritorializar e difere de si mesmo enquanto se repete. Assim como há um devir-vespa da orquídea e um devir-orquídea da vespa, existe um devir-deleuze de Kerouac e um devir-kerouac de Deleuze. Conceitos e narrativa se encaminham um para o outro: núpcias. Preparemos a cama.
Introdução
Imaginemos um Ulisses sem Ítaca, sem Penélope, sem nada além da jornada e da aventura. Viagem que não se inicia ao término da guerra de Troia, mas brota pelo meio e segue adiante. “O que conta em um caminho, o que conta em uma linha é sempre o meio e não o início nem o fim.” (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p.24). Imaginemos um Homero que fosse ao mesmo tempo Ulisses e que trocasse o verso por uma prosa gaga, musical, delirante.
Assim é Kerouac ao se desdobrar em Sal Paradise, narrador-personagem do livro On the road. “O romance é a Epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda tem por intenção a totalidade.” (LUCKACS, A teoria do romance, p.55)
A primeira versão de On the road foi escrita em três semanas do mês de abril de 1951, com Kerouac datilografando de seis a sete horas por dia aditivado por benzedrina e café e inspirado pelo bebop. Nesta época, ele era um experimentador, ainda não havia se enfiado no buraco negro do alcoolismo. O manuscrito original foi rejeitado por diversas editoras, até que em 1957, a Viking Press finalmente decidiu publicar o livro, após inúmeras alterações exigidas pelos editores. O enredo, aparentemente simples, trata das perambulações de Sal Paradise (Jack Kerouac) e Dean Moriarty (Neil Cassady) pelos Estados Unidos e México.
Jeck Kerouac em sintonia com o seu rádio
Não é nossa intenção aqui atermo-nos ao enredo. Pretendemos neste trabalho mostrar como em On the road, Sal Paradise e Dean Moriarty traem sua classe e criam um rosto mestiço, meio negro, meio mexicano, ao som do jazz e “criam uma nova Terra, mas é possível que o movimento da Terra seja a própria desterritorialização.” (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p. 28). Além disso, com sua prosa espontânea, repleta de consonâncias, aliterações, repetições, onomatopeias, influenciada pela fala das ruas e o som dos negros, Kerouac cria uma língua menor, gaga, no seio do inglês standard. Um escritor gago em sua própria língua. Por último, analisaremos o conceito de diferença e repetição na obra do escritor beat.
Hit the road Jack, and don´t come back no more, no more, no more.
I – A estrada e a traição
No romance On the road, tanto o personagem principal, Dean Moriarty, quanto o narrador-personagem Sal Paradise são jovens, brancos, nos Estados Unidos dos anos 1940: “My first impression of Dean was of a young Gene Autry – trim, thin-hipped, blue-eyed, with a real Oklahoma accent – a sideburned hero of the snowy West.” (KEROUAC, On the road p. 4). No entanto, nenhum dos dois se enquadra no estereótipo do jovem americano branco de classe média. Ambos encarnam muito mais aquilo que num artigo Norman Mailer chamou de white negro: jovens brancos que viviam à margem da sociedade e se autodenominavam hipster; duas décadas mais tarde, hippies.
Em grande parte de sua obra de inspiração autobiográfica, Kerouac relata o envolvimento com as minorias e os excluídos. Em Os subterrâneos, Kerouac descreve seu romance com uma jovem negra, Mardou Foxx. Tristessa e Esperanza, personagens de outros livros, são inspiradas em prostitutas viciadas mexicanas com as quais Jack manteve relacionamento. “Há devires-negros na escritura, devires-índios, que não consistem em falar como índio ou crioulo.” (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p. 36). No próprio On the road, há alusões a noitadas em boates negras, farras em prostíbulos mexicanos e o terno romance com a lavradora Terry:
Then they yoohooed us and got great glee out of seeing a guy and a girl on the road. Dozens of such cars passed, full of young faces and “throaty young voices”, as the saying goes. I hated every one of them. Who did they think they were, yaahing at somebody on the road just because they were little high-school punks and their parentes carved the roast beef on Sunday afternoons? Who did they think they were, making fun of a girl reduced to poor circunstances with a man who wanted to belove?[…] Now they saw that Terry was a Mexican, a Pachuco wilcat; and that her boy was worse than that. (KEROUAC, On the road, p.80).
O trecho parece ter sido escrito a partir do mesmo lugar aonde Deleuze foi para escrever:
Que o escritor seja minoritário não significa que há menos pessoas que escrevam do que leitores; já não seria verdade hoje em dia: significa que a escritura encontra sempre uma minoria que não escreve, e ela não se encarrega de escrever para essa minoria, em seu lugar, e tampouco sobre ela, mas há encontro onde cada um o empurra, o leva em sua linha de fuga, em uma desterritorialização conjugada. A escritura se conjuga sempre com outra coisa que seu próprio devir. Não existe agenciamento que funcione sobre um único fluxo. Não é o caso de imitação, mas de conjugação. O escritor é penetrado pelo mais profundo, por um devir-não-escritor. (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p.36).
Antes de mais nada, Kerouac-Paradise, muito mais até que Cassady-Moriarty, é um traidor , “não um trapaceiro, mas um traidor de seu próprio reino, traidor de seu sexo, de sua classe, de sua maioria – que outra razão para escrever? E ser traidor da escritura.” (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p. 37).
II – A gagueira espontânea e o rosto assimétrico
Escrever é uma procura, jogo entre superfícies e profundezas. Só é possível escrever escrevendo, mas o que se escreve? Será que está claro ao menos para o escritor? Claro que não, há algo que quer ser dito, mas o quê? O escritor procura, aprende enquanto escreve, como um ciclista que tivesse de reaprender a se equilibrar a cada corrida. Direto ao ponto, deixemos Deleuze falar:
Seria assim: no alto a redundância como modo de existência e propagação das ordens (os jornais, as “notícias” procedem por redundância); embaixo, a informação-rosto como sendo sempre o mínimo requerido para a compreensão das ordens; e, mais abaixo ainda, algo que poderia ser tanto um grito quanto o silêncio, ou a gagueira, e que seria como a linha de fuga da linguagem, falar em sua própria língua como um estrangeiro, fazer da linguagem um uso menor. (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p.19).
Kafka, em seu diários, dizia só escrever de madrugada, aos jorros, atormentado pela insônia e a ferida. Kerouac criou a prosa espontânea que se caracteriza justamente por uma ausência de técnica, muito semelhante à escrita automática dos surrealistas. Quem escreve segundo esquemas e roteiros preestabelecidos, senta-se sobre o topo da montanha, em cima de três mil anos de cultura, e, de lá, liga a máquina. Aqueles que trabalham assim podem ser criativos, trazer o novo, mas não são originais, funcionam como um liquidificador, misturam códigos, ideias, fluxos que já se encontram na cultura, sintaxes já dominadas e procuram devolver ao mundo um produto novo, homogêneo e, se possível, bom; no entanto não tocam a origem.
Quem opera por jorros, gagueja, escreve como o primeiro homem escreveu, toma a cultura desde o início e a refunda. Comparemos a palavra à perfuração de um poço. As primeiras horas de escrita correspondem ao momento em que a broca penetra o chão, a rocha, o ferro. E difícil, missão quase impossível, entretanto, depois, quando a palavra chega à Linguagem e a broca ao lençol freático, a água, a palavra, jorram vivas, humanas, universais. Água, e palavra, e simpatia. Assim como o poceiro é dono da broca, mas não do lençol freático, o escritor é dono do início, mas não do jorro. Agora, aquele que escreve é um instrumento, tal qual a caneta, ou o computador.
Acreditem em minha simpatia. A simpatia não é um sentimento vago de estima ou de participação espiritual, ao contrário, é o esforço ou a penetração dos corpos, ódio ou amor, pois também o ódio é uma mistura, ele é um corpo, ele só é bom quando se mistura com o que odeia. (DELEUZE & PARNET, Diálogos, p. 43)
E o que é que se mistura na palavra líquida de Kerouac? Em sua gagueira espontânea? Solos de sax… De trompete… Gírias… Repetições… Galicismos… A voz do negro… Do índio… Do estrangeiro. Não é exagero citar o estrangeiro, Kerouac era de fato bilíngue em sua própria língua. Sua família era de origem franco-canadense, até os seis anos, o pequeno Ti Jean, apelido de Jack entre os familiares, falava apenas o joual, dialeto canuk franco-canadense: aprendeu o inglês e aperfeiçoou o francês na escola:
A condição bilíngue, de uma espécie de estrangeiro em seu próprio país, certamente tem relação com seu modo de escrever: a sintaxe, o ritmo e a prosódia, sua exagerada amplidão vocabular. Chegou a declarar que escrevendo em inglês pensava em francês. (WILLER, Geração Beat, p. 37).
Tudo o que em On the road é maior, o é pelo seu mergulho em um devir menor, pelo flerte com o fora, momento em que a língua difere de si mesma. A língua é viva, é a própria diferença. Assim como o objeto é uma dobra do espaço, o livro é uma dobra da Linguagem, mas não uma dobra para dentro, muito mais para fora. Todos temos um rosto, mas enquanto uns têm o rosto branco, cabelos loiros e olhos azuis, outros têm rostos negros, chicanos, femininos, gays. Se transformássemos On the road num rosto, não seria o rosto masculino, branco, simétrico, do americano médio, mas sim um daqueles retratos mistos pintados por Pablo Picasso. Sem mais delongas, com a palavra Sal Paradise, alter-ego de Kerouac em On the road:
But then they danced down the streets like dingledodies, and I stambled after as I´ve been doing all my life after people who interest me, because the only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commompace thing, but burn, burn, burn like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars and in the middle you see the blue centerlight porp and everybody goes “AWWW”.” (KEROUAC, On the road, p.7).
III – Superfícies e cisões
O que difere, não difere só do outro. O que difere, difere também de si mesmo:
Se a filosofia tem uma relação positiva e direta com as coisas, isso somente ocorre à medida que ela pretende apreender a coisa mesma a partir daquilo que tal coisa é, em sua diferença a respeito de tudo o que ela não é, ou seja, em sua diferença interna. Objetar-se-á que a diferença interna não tem sentido, que um tal noção é absurda; mas, então, negar-se-á, ao mesmo tempo, que haja diferenças de natureza entre coisas do mesmo gênero. (DELEUZE, A ilha deserta, p. 48).
Numa superfície lisa nada brota além do ordinário. É no tecido enrugado, na reentrância, na cisão, que brota o extraordinário, o inaudito. Em um de seus aforismos, Cioran afirma que só os indivíduos rachados possuem aberturas para o além. Dostoiévski, um dos ídolos de Kerouac, sabia disso e nomeou o protagonista de Crime e castigo de Raskólnikov, que, em russo, quer dizer cindido. É pela diferença entre o pequeno Ti Jean e o desajustado Jack que brota a Arte ao mesmo tempo terna e violenta do maior autor beat. A Rússia rendeu os mais poderosos romancistas do Século XIX justamente por causa da diferença, da cisão entre a tradição czarista, quase feudal, e o futuro revolucionário. A obra de Dostoiévski é o registro dessa duração. O passado e o futuro lado a lado no presente.
Se o ser das coisas está de certo modo em suas diferenças de natureza, podemos esperar que a própria diferença seja alguma coisa, que ela tenha uma natureza, que ela nos confiará enfim o ser. (DELEUZE, A ilha deserta, p. 47).
Se admitimos um universo onde não exista a primazia do eu (cogito), dominado primordialmente por fluxos “a tendência é que é o sujeito. Um ser não é o sujeito, mas a expressão da tendência, e ainda um ser é somente a expressão da tendência à medida que ela é contrariada por uma outra tendência.” (DELEUZE, A ilha deserta, p. 51).
Estamos aqui diante do corpo sem órgãos, dominado unicamente por fluxos, forças, linhas de fuga e tendências. Um corpo com órgãos é Apolo, mas um corpo sem órgãos é Dioniso, pois fígado, rins e coração foram servidos no banquete. Ainda assim, se não existe uma fenda, uma cisão, se a pele, e o mais profundo aqui é a pele, é lisa, então o inaudito permanece refém, na véspera de uma gênese. É pela cisão que se chega ao espaço literário, ao impessoal, ao SE, ao neutro de Blanchot.
A palavra é uma fôrma pequena para um bolo grande demais, é preciso transformar a própria fôrma em bolo. Torná-la universal. A viagem de Sal Paradise não é só a viagem de um rapaz do século XX, mas repete a viagem de Ulisses, feito um Pierre Menard que escrevesse não um outro Quixote, mas a mesma Odisseia. É por isto que esta flecha lançada alcança os pontos mais remotos do planeta e quem a apanha sente imediatamente necessidade de passá-la adiante: arte é comunhão.
E, assim como um dia, um jovem, na periferia de São Paulo, colou fotografias dos caras da beat generation na cabeceira da cama e foi dormir acreditando que a vida seria possível, um outro jovem, que ainda nem nasceu, num país distante, poderá, num futuro não muito distante, respirar essa mesma corrente de ar e meter o pé na estrada like a rolling stone.
Roubos, furtos e apropriações:
KEROUAC, Jack. On the road. London: Peguin Books, 2000.
KEROUAC, Jack GINSBERG, Allen. As cartas. Editadas por Bill Morgan e David Stanford. Porto Alegre: LP&M, 2013.
WILLER, Claudio. Geração Beat. Porto Alegre: LP&M, 2009.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BLANCHOT, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2012.
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
_______________. O que é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010.
_______________. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1988.
_______________. A ilha deserta e outros textos. Org. David Lapoujade e trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_______________. A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. Luiz B.L. Orlandi. Campinas: Papirus, 2011.
_______________. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.
_______________. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.