‘O Aborto’ – romance anti-patriarcal esquecido pela crítica

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Obra naturalista de grande sucesso na época, O Aborto aborda um tema ousado ainda para os nossos dias, e foi ignorado pela crítica tradicional

Figueiredo Pimentel
Figueiredo Pimentel

                Morde-me a mim e ao meu livro com toda a tua hidrofobia; lança-nos os teus insultos e as tuas fezes; calunia-nos; fere-nos!

                (Figueiredo Pimentel – O Aborto)

É com essa provocação que o escritor naturalista Figueiredo Pimentel abre O Aborto, um de seus romances mais polêmicos, logo após um Prefácio indispensável, em que conta a história da obra e se defende das acusações de imoralidade, comuns a escritores realistas/naturalistas, como Émile Zola, Eça de Queirós, Aluísio Azevedo. Inicialmente intitulado O Artigo 200, em referência à lei de criminalização do aborto no Código Penal do Império, o livro foi escrito em dez dias, por aposta, e publicado na Província do Rio, periódico niteroiense, em 1889. Após várias reclamações dos leitores, a redação decidiu fazer modificações radicais no enredo até decidir por sua suspensão. Em 1893, o romance foi publicado integralmente pela Livraria do Povo, sob o título escandaloso O Aborto, e foi um sucesso de vendas, tendo atingido cerca de sete mil exemplares em poucos meses. Décadas mais tarde, ignorado pela crítica tradicional, a obra caiu em ostracismo, tendo sido recentemente redescoberta em nova edição da 7Letras, na coleção Os pequenos naturalistas.

Não é difícil compreender a polêmica lançada à época, tendo em vista que o assunto abordado ainda é espinhoso no século XXI. O narrador fala abertamente de menstruação, camisinha e abortivos, em uma sociedade repleta de tabus e hipocrisias, também denunciadas no romance. Maricota, a protagonista, é uma moça atraente, namoradeira e extremamente consciente de suas ações. Seduz o primo Mário, farmacêutico vindo da capital, engana Cordeiro, velho libertino de posses, e planeja tornar-se prostituta de luxo, à la Nana, após a morte de sua mãe e a demência do pai, situação que a deixa desamparada. Sem culpa ou sofrimento, Maricota admite seus desejos e vai na contramão do caminho tradicional de casar-se, ter filhos, ser dona de casa, condições impostas às mulheres de seu tempo. Alegre, bem resolvida, uma Madame Bovary às avessas, já que se instrui com romances naturalistas e o_abortopornográficos.

Quando descobre que está grávida, Maricota pede um remédio abortivo a Mário e acaba falecendo, como ainda acontece com muitas mulheres que tentam abortar em clínicas clandestinas. O desfecho teria caráter punitivo, apesar do tom transgressor de todo o enredo? Talvez seja mais pertinente analisar esse fim como banal, semelhante aos casos do cotidiano, ou mesmo como uma denúncia aos riscos de um aborto descuidado. A chave de interpretação de que a morte da mulher adúltera/devassa seria uma tentativa de moralização do autor se proliferou por conta das justificativas dos naturalistas para serem respeitados enquanto escritores sérios, com uma proposta estética realista de representação dos fenômenos sociais. Mesmo assim, suas obras foram apropriadas pelo público leitor como pornográficas, e grande parte de seu sucesso se deve, intencionalmente ou não, à polêmica dos temas.

A edição da 7Letras conta ainda com críticas da época à obra. Uma de Coelho Neto, em que reconhece o talento do autor, mas julga o livro escandaloso, e outra de Magalhães de Azevedo, que destrói o romance. Este último apresenta uma avaliação tradicional, moralista, critica o mau gosto do público e a concepção do livro como objeto de comércio. Chega ao ponto de afirmar que a língua usada pelo escritor não é a portuguesa, por causa de sua coloquialidade. Em parte, superamos esses valores após o modernismo, porém ainda há bastante preconceito contra best sellers, por motivos parecidos (comercialização da obra de arte, linguagem não erudita). Temas polêmicos são evitados nas escolas, como o racismo de Monteiro Lobato (o mais eficiente é abolir sua obra dos manuais didáticos?); a reedição de Minha Luta, de Hitler, foi censurada pela suposta influência negativa em grupos fascistas, de maneira semelhante à proibição de romances licenciosos a mulheres no século XIX, sob o risco de serem corrompidas. Nossa crítica permanece conservadora, subestima a consciência crítica dos leitores, seu poder de escolher o que e como devem ler.

O Aborto é um importante resgate da literatura naturalista, por sua qualidade como folhetim e ousadia temática. Se a crítica permanece moralista, os leitores também continuam curiosos, e a reflexão das questões sociais, humanas, a partir da literatura, é sempre válida.

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