O acaso, a necessidade e a sujeira de Ferreira Gullar

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Poema Sujo, obra-prima de Ferreira Gullar, foi concebida quando o poeta estava exilado. Será que a obra existira se isso não tivesse acontecido?

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Ferreira Gullar

O século XX foi marcado por golpes, guerras e ditaduras. O Brasil, assim como tantos outros países, também estava imerso nessa atmosfera claustrofóbica de repreensões e grandes mudanças. Foram em momentos como esses que nasceu e cresceu José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar. Ele é um dos poetas mais consagrados da literatura brasileira, fundador do neoconcretismo e postulante da cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras – coisa que pouquíssimos poetas conseguem; não por incapacidade, mas por preconceito das classes literárias. Aconteceu com Ferreira o que aconteceu com muitos artistas da época, infelizmente. O exílio deixou de ser um temor e passou a ser realidade quando o poeta foi preso e exilado em Paris e depois em Buenos Aires. Foi absolvido pelo STF em 1977, podendo retornar, então.

Há pouco tempo tive o prazer de assistir uma palestra do autor, que afirmou que não existe destino, mas sim “acaso e necessidade”. As duas coisas unidas geram consequências que podem mudar para sempre nossas vidas. Nada predestinado. Isso me fez refletir: e se Ferreira Gullar não houvesse sido exilado? A primeira consequência me veio imediatamente. O Poema Sujo não existiria. Tal obra só foi possível graças ao momento, que não era dos melhores, do poeta. Infelizmente, foram necessárias séries de desventuras para que uma das maiores obras brasileiras fosse publicada. Devemos agradecer, então, ao acaso que desencadeou todas essas desventuras e a necessidade que Ferreira sentiu de escrever Poema Sujo.

Durante o exílio, Ferreira Gullar percebeu que poderia não haver o amanhã. E, caso não houvesse realmente, o que seria dele? Por isso a necessidade de pôr no papel tudo que passasse por sua cabeça, tudo que precisasse ser imediatamente falado, antes que não houvesse tempo para mais nada dizer. E assim foi feito:

[…]

turvo turvo

a turva

mão do sopro

contra o muro

escuro

menos menos

menos que escuro

menos que mole e duro

menos que fosso e muro: menos que furo

escuro mais que escuro: claro

como água? como pluma?

claro mais que claro claro: coisa alguma

e tudo

(ou quase)

um bicho que o universo fabrica

e vem sonhando desde as entranhas

(Trecho de Poema Sujo)

 

O Poema foi lido pela primeira vez na casa de Augusto Boal (um dos grandes nomes do teatro contemporâneo) em Buenos Aires, a pedido de Augusto e de Vinícius de Moraes, que estava pela cidade. Segundo o que conta Ferreira Gullar, brincando, “Vinícius se emocionou, e isso era muito difícil de acontecer, imaginem…”. Mas Vinícius estava certo: aquilo precisava vir para o Brasil. Diante dessa situação, os amigos gravaram o “Poema Sujo” na voz de seu autor e Vinícius trouxe para o Brasil a tal gravação, promovendo aqui vários recitais para que as pessoas pudessem escutar a poesia. O sucesso foi imediato. A qualidade era tanta que no ano seguinte, 1976, o editor Ênnio Silveira publicou o livro. Todo mundo queria ler Poema Sujo.

A fama da obra não é difícil de ser compreendida. Os versos fluidos, palavras simples, o impacto da linguagem escolhida pelo autor e a realidade dos sentimentos ali expostos geram motivos mais que suficientes para procurar o texto. No poema, Ferreira trata da passagem do tempo como algo inevitável e crucial. O dia e a noite, o passado e o presente. As sensações físicas versus os sentimentos. A união da realidade artística com realidade factual. A política e o meio social intrínsecos e implícitos no decorrer das estrofes. As pessoas que leram – e gostaram – do Poema sentiram ainda mais vontade de lutar contra a ditadura, pois o sentimento de união se tornou mais forte. Hoje ainda a obra causa o mesmo efeito em quem a lê. O leitor volta seu olhar para sua vida e aquilo que o cerca, reflete.

O “sujo” do nome pode ter, principalmente, dois significados: a época em que foi escrito, na qual o país e o mundo viviam na sujeira, e também a linguagem coloquial e a pornografia. Muita gente não gosta do livro por não admitir tal linguagem na poesia, que é ainda vista como a mais pura manifestação literária pelos tradicionalistas.

[…]

azul

era o gato

azul

era o galo

azul

o cavalo

azul

teu cu

tua gengiva igual a tua bocetinha

que parecia sorrir entre as folhas de

banana entre os cheiros de flor

e bosta de porco aberta como

uma boca do corpo

(não como a tua boca de palavras) como uma

entrada para

eu não sabia tu

não sabias

fazer girar a vida

com seu montão de estrelas e oceano

entrando-nos em ti

bela bela

mais que bela

mas como era o nome dela?

Não era Helena nem Vera

nem Nara nem Gabriela

nem Tereza nem Maria

Seu nome seu nome era…

Perdeu-se na carne fria

perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia

(Trecho de Poema Sujo)

 

Talvez a tarefa mais difícil seja tentar separar o Eu Lírico de Poema Sujo da pessoa Ferreira Gullar. Existiria essa diferença, se ele mesmo afirma ter escrito aquilo que queria dizer? A obra é há muito tempo vista como memorialista e quase autobiográfica. Eu não discordo.

Hoje, Ferreira Gullar tem 84 anos e diz que não anda escrevendo porque já não se espanta mais. “A poesia nasce do espanto”, ele afirma.

 

 

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