“O Africano” não é um simples livro de memórias

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O Africano, de Le Clézio, vai além de um texto de memórias autobiográficas, pois possui tom de denúncia social

Jean-Marie Gustave Le Clézio
Jean-Marie Gustave Le Clézio, autor de “O Africano”

Longe de ser um livro apenas de memórias autobiográficas, O Africano, do escritor Le Clézio¹, tem certo tom de denúncia social. Não de forma altamente explícita, o autor faz crítica à despreocupação das forças políticas mundiais não só com a Nigéria, onde passou uma parte memorável de sua infância, mas com a África em um contexto geral. Além disso, o escritor faz crítica à apropriação da cultura africana por aqueles que nem mesmo sabe o que cada dito “artigo de consumo” significa e critica a África apresentada nos romances coloniais dos escritores ingleses.

Antes de tudo, comecemos pelas memórias: em 1948, com o final de uma guerra, Le Clézio, que morava em Nice, no Sul da França, embarcou com sua família para Nigéria. Apenas ao chegar lá pode conhecer seu pai, viram-se pela primeira vez. Seu pai era médico de campanha, a guerra havia impedido que ele retornasse à França. A partir daí, não só o escritor, ainda jovem menino, conhece seu pai, mas também a Nigéria. O livro reúne vastas emoções e observações da relação pai e filho e ambos com a terra onde passaram a habitar.

Lé Clézio passa a ter amor e interesse pela visão de verdade, da realidade vivida na Nigéria. Ao ver, pela primeira vez o corpo nu de uma senhora, relata: “O corpo nu dessa mulher feito de dobras, de rugas, sua pele como um odre vazio, seis seios longos e flácidos, caindo sobre a barriga, sua pele rachada e desbotada, meio cinzenta, tudo isso me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, verdadeiro” (CLÉZIO, 2012, p. 11). Conta que não sentiu horror ou pena, mas amor e interesse por aquilo que remete à realidade, à verdade. Relata, ainda, que na França, na Europa, as mulheres estão distantes e imunes à “doença da idade” (p. 11), sempre com anáguas e cintas, combinações e sutiãs.

Apaixonado pela África e suas “verdades”, Le Clézio diz que ela “era mais o corpo que o rosto. Era a violência das sensações, a violência dos apetites, a violência das estações.” (p. 12). E que o presente africano tinha apagado aquelas suas memórias procedidas da França, no apartamento em Nice, e o confinamento da guerra. Em Ogoja, lugar onde morou, havia a liberdade: era o reino do corpo, do espírito; o local não era um jardim recreativo, era um quintal, pois, como ele reflete, não havia recreação naquela terra, tratava-se de um espaço utilitário, para plantar e criar. Ao mudar-se pra África, era como ter mudado de mundo. Mundo em que sua família, branca, foi aceita pelos africanos independente de suas diferenças.

É interessante outro ponto em que há tom de denúncia, que é quando o escritor fala da escolha de seu pai em trabalhar longe da vida inglesa. O pai optou por uma vida não muito normal; como ele relata, viveu solitário por anos, antes da vinda da família.  Poderia ter optado por tratar “de pessoas leprosas ou com prisão de ventre” (p.13), mas optou por tratar “de vítimas de malária ou de encefalite” (p. 43). A escolha do pai não foi gratuita, nem mesmo altamente lucrativa. Mergulhar em outro mundo, arrastar-se para uma vida diferente foram os modos de “escapar da mediocridade da vida inglesa” (p.43).

Uma das maiores críticas do de Le Clézio é, como mencionada anteriormente, sobre a apropriação da cultura africana por aqueles que nem mesmo sabem o que cada dito “artigo de consumo” significa. Vemos, nos mais diversos países, a cultura africana sendo colocada nos móveis, nos quadros, nas roupas, nas bijuterias, mas não como uma forma de consciência da cultura africana propriamente dita, seus significados e sua história. Tais artigos não fazem sentido nenhum para maioria daqueles que os usam. Sobre isso, o escritor comenta:

Para mim, tais objetos, as esculturas em madeira e as máscaras penduradas nas paredes, nada tinham de exóticos. Eram a minha parte africana, prolongavam-me a vida e, de certo modo, a explicavam. […] Senti espanto e até mesmo indignação ao descobrir, bem mais tarde, que objetos dessa espécie podiam ser comprados e expostos por pessoas que nada haviam conhecido de tudo aquilo, pra quem eles nada significavam e, pior ainda, para quem essas máscaras, estátuas e esses tronos não eram coisas vivas, mas sim a pele morta do que se chama com frequência de “arte”. (p. 68-69)

Outra crítica feita pelo escritor é sobre a África retratada nos romances “coloniais”, escrito por ingleses, como Joyce Cary e William Boyd. Para ele, nada nessas obras é reconhecido como realmente existe/é, pois tais obras são, de modo geral, uma maquiagem dada à África – e o escritor agradece a Deus por isso não lhe ter afetado. Segundo o autor, a verdadeira África, a real, tem grande densidade humana, é dobrada pelas doenças e pelas guerras tribais; é forte e hilariante, com suas incontáveis crianças e festas dançantes, possui bom humor, apesar das incontáveis tristezas; é selvagem e, ao mesmo tempo, humana. Sobre Ogoja, especificamente, assevera que  aquela era uma terra onde “os homens e as mulheres eram diferentes do todo, não por causa da cor de sua pele e de seus cabelos, mas por seu modo de falar, de andar, de rir, de comer” (p.102); local onde “a doença e a velhice eram visíveis, onde a alegria e as brincadeiras da infância evidenciavam-se ainda mais” (p.102) e onde “o tempo da meninice termina muito cedo, quase sem transição, onde os garotos trabalham com seus pais e as mocinhas se casam e já carregam seus filhos aos treze anos.

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“O Africano” (Cosac Naify, 2012)

O escritor não deixa de transparecer, em alguns momentos da narrativa, o seu descontentamento em relação ao restante do mundo não se importar com tudo que acontece não só na Nigéria, mas na África de maneira geral, que foi tomada por “velhos demônios, a malária a disenteria, a fome” (p. 108) e “a nova peste da AIDS, que ameaça um terço da população total da África, enquanto as nações ocidentais, que detêm os remédios, como sempre fingem nada ver, nada saber” (p. 108). Le Clézio fala, ainda, dos massacres de 1948, período em que Nigéria entrou na fase da guerra de Biafra, em que houve um dos maiores genocídios do século; apenas em setembro deste ano, quando não há mais operações militares, é que as organizações internacionais penetram na zona rebelde e descobrem a extensão do horror que cobre aquela terra: “Ao longo das estradas, à beira dos rios, nas estradas das aldeias, centenas de milhares de crianças estão morrendo de desidratação e de fome. É um cemitério tão vasto quanto um país” (p. 110). Nesse período, o escritor e sua família já se encontram na França, onde o país em que viveram era retratado para o resto do mundo pela primeira vez.

Sobre o pai, por fim, ao voltar pra França: era como se ele fosse, de fato, um africano, preservou todos seus hábitos; vivia como um exilado da sua vida, da sua paixão. Foi um dos períodos mais difíceis de sua vida, com dificuldades de adaptação e rompantes de cólera. Após a guerra (ou massacre) de Biafra, então, ele entrou em um mutismo que o acompanhou até morte. Já Le Clézio, este se questiona sobre o que teria se tornado se não tivesse tido o conhecimento “carnal” da África, se não tivesse tido essa herança em sua vida, que veio de seu pai e que foi importantíssima para ele.

 

¹Jean-Marie Gustave Le Clézio, que assina J.M.G. Le Clézio, é um escritor franco-mauriciano; recebeu o Nobel de Literatura de 2008.

 

Referência:

LE CLÉZIO. J. M. G. O Africano. Trad. Leonardo Froés. 1ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

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