O Aleph, Borges e Carlos Daneri: entre o desprezo e o fascínio

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O que Borges realmente sentia por Beatriz? O que Borges, de fato, sentia por Carlos? O que Carlos sentia por Borges? Inúmeras respostas são possíveis para tais questionamentos. 

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Jorge Luis Borges

Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, Ítalo Calvino escreve que Jorge Luis Borges é um exemplo de ideal estético, de exatidão da imaginação e de linguagem. Calvino explica porque Borges simboliza o escritor ideal:

“Cada texto seu contém um modelo do universo ou de um atributo do universo- o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico; porque são sempre textos contidos em poucas páginas, com exemplar economia de expressão; porque seus contos adotam frequentemente a forma exterior de algum gênero da literatura popular, formas consagradas por um longo uso, que as transforma quase em estruturas míticas” (pág. 133).

Publicado no fim da Segunda Grande Guerra, O Aleph apresenta conto homônimo, no qual o universo surge com toda sua intensidade aos olhos do narrador. A pequena esfera, que reproduz a eternidade, é o centro provocativo da narrativa. Na avidez de se interpretar o fantástico, o alegórico e o maravilhoso, às vezes, ficam para trás algumas particularidades que são de extrema importância para a elaboração de uma história. No conto, O Aleph só será revelado após um intenso convívio entre Borges, narrador em primeira pessoa, e Carlos Argentino Daneri, personagem.
Tudo começa com a paixão do narrador por Beatriz Viterbo, afeto que não é correspondido. A mulher que sempre o esnobara morre em fevereiro de 1929. Necessitando sentir-se próximo à memória da amada, Borges passa a frequentar a casa que, durante anos, abrigou Beatriz. As visitas sempre aconteciam no dia do aniversário dela, 30 de abril.
O narrador faz essas visitas de 1929 a 1941. São doze anos dedicados à lembrança de Beatriz e doze anos de um contato insólito com Carlos Argentino, primo da amada, residente na mesma casa. Aos poucos, a relação entre narrador e personagem intensifica-se no conto. Os Sentimentos de inveja, concorrência e admiração, que envolvem o testemunho do protagonista, são indubitáveis. Todas as informações fornecidas ao leitor da história advém do narrador em primeira pessoa, por isso todas as descrições feitas sobre o personagem Carlos Danieri estão encobertas por sentimentos de repulsa, ciúme e despeito.Do início ao fim do conto, Carlos Argentino é delineado de maneira desmoralizante, irônica e sarcástica. Lê-se:

“Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente”;… (pág. 159).

O desprezo do narrador principia com expressões do gênero: cargo subalterno, biblioteca ilegível. O local e o trabalho do homem são menosprezados por Borges, assim como o talento do homem: “Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante” (pág. 159). A partir desse momento, o leitor presume que há, na verdade, uma implícita admiração do narrador por Carlos Argentino que, nas linhas explícitas, são desdém e sarcasmo.

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Jorge Luis Borges

Se a atividade de Argentino, segundo as descrições de Borges, beira o patético, há quesitos que parecem ferir o narrador. Carlos Argentino, ao contrário de Borges, em toda sua estúpida vida, é apaixonado e versátil, enquanto o narrador é prostrado, vive de lembranças, amarguras, mantendo uma personalidade metódica e obsessiva.
O sentimento de Borges em relação a Carlos desdobra-se entre o desprezo e o fascínio. Ao ver Argentino, o protagonista é capaz de encontrar uma sutil semelhança física entre o primo e Beatriz: “Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas” (pág. 160). Borges quer forjar em Carlos, numa vã tentativa, o ressurgimento de sua amada.
Como conseqüência de longo convívio, para além das minúcias físicas e psicológicas, adentra na narrativa a questão do fazer literário. Tanto Borges quanto Carlos estão mantendo uma intensa relação ligada à literatura. Em uma das passagens do conto, Argentino mostra o poema Terra, no qual descreve o planeta. Aos olhos de Borges, nas estrofes do poema “nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior” (pág.161).
Nesse trecho, o narrador faz questão de expor a “mediocridade” de Argentino. A produção literária, a estética perfeita e rigorosa é artigo que Carlos não domina. Borges deixa evidente sua superioridade em relação ao “amigo”. Supremacia que “cai por terra” quando, no fim do conto, o narrador diz que Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura, enquanto ele se quer obteve um voto. Lê-se: “Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja!” (pág. 172).
No decorrer da trama, há um fato bem significativo. À medida que o tempo passa (período de 12 anos), a imagem de Beatriz parece, aos poucos, apagar-se. Se no início da história Beatriz era descrita incessantemente; do meio para o fim, será substituída pela presença do primo, Carlos Daneri. A abominação que Borges sente por Argentino, faz com que esse alcance uma dimensão de destaque no conto. O convívio do narrador com o personagem é tão intenso que chega às raias da contradição, quando Borges aguarda ansiosamente um telefonema do outro (homem o qual diz odiar):

“Felizmente, nada ocorreu – salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia” (pág. 165).

O narrador aparenta ter um complexo de inferioridade em relação aos membros dessa família. O protagonista sente-se humilhado, tanto que seu ódio transforma-se em inveja, em necessidade de se achar extremamente necessário à existência de Carlos Argentino. Borges, no fundo, quer estabelecer uma relação em que o outro sinta-se submisso e dependente dele (tudo que Beatriz não foi). E, por fim, surge o elemento altamente significativo do conto, ocorre a revelação de um Aleph. Nessa passagem, Borges considera Daneri um louco, tenta atribuir todo o desprezo que sofreu por parte de Beatriz a essa insanidade:
Carlos Argentino era louco. De resto, todos esses Viterbo… Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade no fundo, sempre nos detestamos (pág. 167).
Questiona-se: quem detestava quem? Mais: o que Borges realmente sentia por Beatriz? O que Borges, de fato, sentia por Carlos? O que Carlos sentia por Borges? Inúmeras respostas são possíveis para tais questionamentos. As informações que há sobre Carlos Argentino Daneri são dadas por Borges e, por isso mesmo, suspeitas. Em todos os diálogos em que Carlos se manifesta, há algo de caricato em suas falas e em seus gestos. O pedantismo e a mania de grandeza, características atribuídas a Argentino, acabam por se virar para o lado do narrador. É como se Borges se bipartisse, se assemelhando com a parcela rival, “embora estranhamente congraçadas e interdependentes” (LUIZ COSTA LIMA). Quando Borges insiste em caricaturar o provincianismo e o deslumbramento de Daneri , revela-se um Carlos, revela-se um duplo, revela-se o outro.

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