“A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos faz compreender melhor o mundo e nos ajuda a viver”
Todorov em A Literatura em Perigo
Se ninguém disse ainda, eu digo e afirmo agora: o amor é imensurável, principalmente quando estamos falando sobre o amor pela literatura, que é o caso de hoje.
A data especial contribui para toda esta sentimentalidade, vista e sentida em cada uma das palavras impressas neste singelo post. Singelo sim, pois trata-se da homenagem de uma simples leitora a um grande escritor.
Não lembro o meu primeiro contato com Machado de Assis, mas o primeiro mais marcante parece ter acontecido ontem. Depois de indicar a leitura de Quincas Borba, para um trabalho escolar, a professora faz uma pergunta, se não me engano sobre o significado da célebre frase “Ao vencedor, as batatas!”. Respondida a questão, por essa que vos escreve, em vez de um incentivo, uma motivação, a patada: “De onde você tirou essa ideia, Priscila?” “Do texto, professora.” “Não minta.” Silêncio constrangedor.
Este seria mais um dos dias em que o ensino médio assassina qualquer possibilidade de um aluno se apaixonar por Literatura Brasileira. Felizmente, o trauma passou e meu caminho tinha outras surpresas, agora agradáveis, sobre Machado de Assis.
Dando um salto cronológico, chegamos ao ano de 2008, centenário de morte de Machado de Assis. A ex-traumatizada continuava lendo, mesmo que timidamente, um ou outro texto machadiano e estava então no segundo ano de Letras.
Era abril ou maio, quando um professor em doutorado fez uma breve visita ao campus. Súbita e inexplicavelmente, nossos caminhos se cruzam e a paixão comum por Machado de Assis ficou evidente. Claro que paixões diferentes: de um lado, uma estudante com muito a aprender; do outro, um professor, com muito a ensinar. Conversa vai, conversa vem, e surge a ideia, depois de uma indignação: “Cem anos de morte do Machado e ninguém faz nada?”. Vinda do professor, então doutorando, Ildo Carbonera, a pergunta desencadeou uma grande amizade e uma série de acontecimentos que ficaram marcados na vida de um pequeno grupo de pessoas.
Foi assim que surgiu a revistinha, a tão linda e amada “A Vida de Quem não Morre”. A primeira edição foi inteiramente dedicada a este que pode ser considerado o principal e maior escritor brasileiro. A capa simples, os textos sinceros e a emoção contida em cada página deixaram um gostinho de quero mais e a revistinha ganhou outras edições, chegando ao número 5.
Aproximando pessoas, a Literatura (Machadiana) ainda me traria outro inesperado prazer. Mais dois anos se passaram. Em 2010, no mesmo campus onde surgiu a ideia para a “A Vida de Quem não Morre”, acontece um destes eventos acadêmicos raros, que ficam na memória dos alunos.
O professor Ildo Carbonera, agora doutor em Literatura Brasileira, consegue trazer como conferencista um professor americano especializado em Machado de Assis. O espanto, nos descrentes em nossos escritores, foi inevitável. Mesmo assim, no dia 01 de setembro de 2010, um grupo de estudantes e professores parou para assistir um dos norte-americanos apaixonados pelas personagens machadianas.
Paul Dixon, da Purdue University, encantou céticos e desavisados, causando imensa alegria e admiração ainda àqueles que enxergaram de longe a tal afinidade eletiva.
Durante sua primeira palestra na Unioeste, o admirável professor falou a respeito dos contos machadianos, especialmente sobre “O Espelho”. A fala transbordava o amor sentido pelo escritor. E como foi fascinante ouvir a voz marcada pelo sotaque de quem ama a Língua Portuguesa! Mais que uma simples palestra, a exposição de ideias sobre a obra deixada por Machado de Assis foi mais uma prova de quão impossível é resistir ao autor de “Dom Casmurro”.
Passado este momento mágico e muitas páginas, chegamos a 2013. Como um filme que passa diante de nossos olhos, lembrei que hoje, domingo, 29/09/2013, é o 105º aniversário de morte de Machado de Assis e de tudo o que ele, sem saber e eternizado em seus personagens, me proporcionou.
Novas e belas amizades e, principalmente, um novo olhar para encarar o mundo, as pessoas. Não sei se você que me lê agora sabe, mas os narradores machadianos revelam, através do olhar, o melhor e o pior, o mais envolvente e assustador e o mais cativante e o mais repulsivo no ser humano.
Não à toa, Alfredo Bosi escreveu sobre o assunto em um dos livros mais indicados para quem quer tentar decifrar os mistérios machadianos – ou melhor, a Emboscada Machadiana. Em “O Enigma do Olhar”, Bosi traz uma série de ensaios, responsáveis por aproximar ainda mais o leitor machadiano do escritor.
Toda essa volta, pra que? Pra mostrar as chances que cada linha criada pelo escritor aqui hoje homenageado pode oferecer. A data, portanto, não pode passar em branco e, valendo-se do clichê para o dia das mães, por exemplo, todo dia pode e deve ser o dia do Machado de Assis.
Se não acredita em mim, que decidiu ficar com o mundo das letras e longe da Academia, dê uma chance a Paul Dixon, perito nos textos machadianos e um eterno admirador de toda a sua obra.
Na última quarta-feira, Paul voltou à Unioeste, agora para falar sobre “Teoria do Medalhão”. Só voltando àquele tempo e àquele espaço para viver a experiência única de esmiuçar as entrelinhas dentro do conto.
Do encontro, resultou um breve bate papo, sobre a importância da obra de Machado de Assis. A entrevista:
Como um jovem estudante americano se interessou pela literatura brasileira, especialmente por Machado de Assis?
Quando jovem, fui um dos mórmons que visitam o Brasil. Você já deve ter visto aqueles rapazes engravatados, que chegam a diferentes países em uma missão, que pode durar dois anos. Enquanto estive aqui, nesta época, me apaixonei pela Língua Portuguesa e pela literatura brasileira. Conheci Machado de Assis, pouco antes de voltar aos Estados Unidos. Lá chegando, decidi que queria aprofundar meus conhecimentos idiomáticos sobre o Português e, principalmente, que queria conhecer a fundo o fascínio que Machado de Assis havia me provocado. Desde então, não parei de lê-lo, estudá-lo.
Depois do primeiro contato, como surgiu a decisão de aprofundar os estudos sobre a Literatura Machadiana?
Quando estudamos literatura, algo maravilhoso acontece: podemos escrever e estudar várias vezes a mesma coisa, sem repetir um assunto. E Machado de Assis oferece essa oportunidade. Ele dá espaço para elaborar ideias como aluno de graduação, especialização, mestrado e por aí vai. As metáforas machadianas são verdadeiros convites para analisar assuntos. O maior exemplo, nesse caso, é Dom Casmurro, um dos romances mais metafóricos da Literatura Brasileira.
A Literatura Machadiana é tida como Universal. Diante dessa perspectiva, como se dá o acesso a leitores leigos e leitores que estudam literatura? O que Machado de Assis oferece a estes dois públicos tão distintos?
Ter um toque, uma sensibilidade humana é pré-requisito para se interessar por literatura. E Machado cria personagens muito humanos, fascinantes. Capitu, por exemplo, foi uma menina humilde, que se interessa ou se apaixona por um rapaz de posse e, em nenhum momento, se intimida diante dele. E isso existe. Com estes personagens incríveis, Machado de Assis cria motivações simplesmente amorosas. Suas personagens são tão humanas que passam a serem pessoas. Outra questão importante é a brasilidade da obra machadiana. Machado foi um escritor envolvido em suas questões contemporâneas. O que faz dele um escritor universal, portanto, é sua capacidade em cativar leitores, independente de nacionalidade ou da região e época em que seus leitores estão inseridos.
Depois de tanto tempo, continuam as surpresas e o encanto pelo texto machadiano?
Sim. A vasta obra de Machado de Assis permite um novo contato a cada dia. São inúmeros contos, poesias, crônicas e diversos romances ali à nossa espera. Se não bastasse toda essa imensidão, existe ainda a releitura. Eu consigo reler os textos dele quase como uma criança, em busca de novas descobertas, novas possibilidades.
Qual foi sua maior descoberta com os textos machadianos?
(Risos). Agora, você me pegou. Difícil responder, mas para não deixá-la sem uma resposta, digo que a mais bonita e a mais surpresa descoberta foi o fato de perceber que um mínimo detalhe nos textos machadianos pode funcionar como uma chave para abrir um mundo rico em possibilidades. Foi assim que escrevi um livro inteiro sobre o chocalho, um dos brinquedos de Brás Cubas. O livro se chama “O Chocalho de Brás Cubas” e lá estão diversas impressões criadas a partir de um único objeto, de um simples símbolo dentro de um dos maiores romances da Literatura Brasileira.
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É isso e muito mais que só o mundo da Literatura pode oferecer. E assim é a “A vida de quem não morre”, Machado de Assis. Tire você, leitor, as suas conclusões. Se quiser compartilhar, sua leitura será bem-vinda!