Em grande parte de suas obras, Marquês de Sade considerada fantasiosa, inútil e perigosa qualquer tipo de religião ou crença
O polêmico Marquês de Sade (1740-1814) implementou, na ficção, um sistema de crueldade em que libertinos poderiam gozar impunemente de vítimas indefesas. Sua escrita é marcada pelo uso de vocábulos diretos, como “foder”, “cu” e “boceta”, o excesso de detalhes e didatismo, a descrição de orgias e os diálogos filosóficos sobre a natureza humana e sua inclinação para o mal. Uma das características mais marcantes dos libertinos sadianos é seu ateísmo absoluto. Em praticamente toda sua obra, o autor prega a livre entrega aos prazeres e a renúncia a qualquer tipo de religião ou crença, considerada fantasiosa, inútil e perigosa. A partir daqui, veremos alguns de seus textos que evidenciam ateísmo.
Livros de Marquês de Sade citados na Matéria:
“Fantasmas”
Na coletânea Diálogo entre um padre e um moribundo e outras diatribes e blasfêmias, de Marquês de Sade, são reunidos textos em que personagens libertinos justificam seu ateísmo, com argumentações que visam derrubar o sistema de valores cristãos. Em “Fantasmas”, extraído de seus cadernos pessoais (Cahiers personnels), por exemplo, postula-se que:
a) Derramou-se mais sangue em nome de Deus do que por motivos políticos.
b) Deus se deixa insultar por ateus como o narrador.
c) Muitos padres são pagãos.
d) O homem só deve cuidar de sua própria felicidade.
e) Deus criou o homem para mergulhá-lo num “abismo de desgraças”.
f) Adoradores de Deus são comparados a Dom Quixote com seus moinhos de vento.
“Diálogo entre um padre e um moribundo”
No conto “Diálogo entre um padre e um moribundo”, um libertino, em seu leito de morte, diz arrepender-se apenas dos vícios aos quais resistiu. Ele dialoga com o padre, tentando convencê-lo de que a religião é sem sentido, e convertê-lo à libertinagem. Ele argumenta que foi “criado pela natureza com apetites muito vivos e paixões muito fortes”, com a função de se entregar a eles.
O que o padre julga criminoso, para ele é simples. Se o criador é mesmo tão poderoso, por que criou uma natureza corrompida? O padre argumenta que Deus deu ao homem o livre-arbítrio. Então o objetivo seria testar a criação, da qual duvida? O padre argumenta que, mesmo conhecendo sua criação, Ele quis lhe deixar o poder de escolha. Por que então não fazer o homem escolher o caminho do bem? O padre diz que é impossível compreender os “desígnios imensos e infinitos de Deus sobre o homem” e compreender tudo o que se vê.
O libertino argumenta que a natureza poderia ter criado tudo sem ajuda divina, portanto não há necessidade de um criador. O padre o chama de ateu e cego e vê que não pode ajudá-lo. O libertino preconiza que cegos são os religiosos, que creem em quimeras. Afinal, não se pode crer no que não se compreende, no que não se pode demonstrar – a fé falha ao não poder comprovar a existência de Deus. Para ele, a natureza se basta a si mesma, e não se pode provar o contrário. Ele só se rende às evidências dos sentidos.
O padre alega que, se tudo é necessário e está regulado, é preciso, para isso, uma “mão onipotente e sábia”. No entanto, o libertino diz que é “possível haver coisas necessárias sem sabedoria”, como a pólvora que inflama ao contato com o fogo; assim sendo, é possível “tudo derivar de uma causa primeira sem haver nessa causa razão ou sabedoria”.
Deus seria, portanto, inútil, e pelo fanatismo religioso o homem foi levado a extremos. As profecias, os milagres e os mártires são fatos históricos, e, assim, duvidosos, pois neles há interesses políticos. Por que Deus não despertaria no coração dos homens os mesmos sentimentos, cindindo-os em várias religiões?
O padre alega que ele deve acreditar em algo após a morte. Ele diz que só acredita no nada, na natureza que se renova, ciclicamente. A natureza precisa do vício e da virtude para manter tudo em equilíbrio. Apenas a razão adverte que não se deve prejudicar os semelhantes, pois isso não torna o homem feliz.
Os princípios que se devem seguir são os que propiciam “tornar os outros tão felizes quanto desejamos sê-los nós mesmos”. Tendo a moral bem estabelecida, não é preciso religião nem deus para seguir. Ao final do discurso, o moribundo perece, mas antes anuncia que seis belas mulheres aguardam no gabinete vizinho. Ele as chama e elas entram, seduzindo o padre, que se corrompe.
“Da imoralidade da alma – primeiro e segundo discursos”
Em “Da imoralidade da alma – primeiro e segundo discursos”, extraído de A nova Justine, argumenta-se que a alma não é substância diferente do corpo. Não é possível pensar independentemente da matéria. Sofremos estímulos externos, não há nada inato; apreendemos tudo pelos sentidos. Deseja-se, por orgulho, a vida eterna, mas isso não passa de uma quimera, pois se não há vida eterna para os corpos, também não há para as almas. Com a morte do corpo, dissipam-se as ideias.
Os povos antigos não costumam falar da imortalidade da alma. As causas de sua admissão seriam encontradas na política, no terror e na ignorância. Todos os animais são compostos de matéria, ainda que suas formas variem. O homem é resultado de um movimento mais extenso da natureza que os outros animais, porém todos possuem a mesma matéria bruta. Deus não poderia ter criado a alma humana, pois senão sobrariam espaços vazios quando as almas encarnassem nos corpos. A alma também não poderia ser uma porção da divindade, já que não se pode prestar culto a si mesmo. Os teístas recorrem constantemente à onipotência, o que gera muitos abusos. As almas não veem nem se movem, portanto sua existência seria impossível.
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“Do inferno”
Em “Do inferno”, extraído de A história de Juliette, argumenta-se que Deus criou o homem admitindo que ele seja vicioso, o que, por si só, já é uma contradição. Todos os erros devem ser punidos, dos mais leves aos mais graves e essa iniquidade poderia ser contestada. Por que, por um lado, deixar que a natureza humana incite aos crimes e, por outro lado, puni-la?
O castigo é quase certo, pois a maior parte da população vive infeliz. Por que há tantas variações na sociedade do que seria considerado crime? Conhecendo ou não as Escrituras, os homens devem ser punidos, o que parece injusto. Não se tem conhecimento direto da palavra de Deus, fica-se sempre à mercê de homens, que podem ser corruptos. A punição divina parece injusta e vingativa. A maioria dos homens sábios duvidou do dogma cristão. Deus deixou o homem ser seduzido pelo fruto proibido, em vez de arrancar a árvore e proteger sua criação.
A crença nos castigos eternos poderia ser necessária para conter os homens, porém, como a doutrina é falsa, é mais perigoso do que útil usá-la para sustentar a moral, pois o homem facilmente se entregará ao vício assim que perceber a frouxidão de tal doutrina. É mais efetivo castigar os homens pela lei do que pela promessa de castigos divinos após a morte.
Onde se cometem mais crimes são entre os monges, ou seja, os que parecem mais convencidos da existência da Deus e suas consequências. Deus deveria ser bondoso, e não cruel e vingativo, impondo castigos a crimes que ele sabe que o homem é suscetível a cometer. Além do mais, já há sofrimentos o suficiente em vida para justificar mais castigos após a morte.
A religião teria como única meta escravizar os homens. É preciso se convencer de que somos apenas matéria e a noção de alma deriva de um efeito simples da matéria. A entrega aos prazeres é a única garantia de felicidade terrena; é melhor do que viver se poupando por causa de algo incomprovado no futuro. O homem só se diferencia do animal pelo orgulho.
Não há nenhuma referência ao inferno na Escritura. A palavra “eterno”, na Bíblia, parece se referir a coisas finitas: a aliança entre Deus e os homens não seria eterna, pois os habitantes de Sodoma e Gomorra descumpriram suas ordens; por isso, a cidade queimaria eternamente, mas o fogo foi há muito cessado. O fogo eterno seria infinito, mas o fogo corpóreo é finito e não poderia agir sobre os espíritos. Onde ficaria localizado o inferno? Nas mais baixas regiões da Terra? Como, num globo que gira sobre si mesmo? No centro da Terra? Entretanto, a Terra seria destruída, então onde ficaria o inferno? Na privação da visão de Deus? Como, se Deus já não é visível?
O temor do castigo divino provém da educação religiosa; quem “viu as paixões aniquilarem todos os preconceitos” não possui esse temor. Os pagãos também acreditavam na noção do inferno, porém de modo diferente da cristandade; eles criam na transmigração dos corpos, não acreditavam na ressurreição. Se o mal é tão necessário quanto o bem, qual o sentido de puni-lo?
“Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”
Em “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”, extraído de A filosofia na alcova, o autor aborda a religião e os costumes, numa sátira ao extremismo dos ideais de liberdade iluministas. O panfleto, de autoria anônima, defende ser necessário extirpar todo culto religioso a fim de permitir o domínio da razão. O poder religioso se equipararia ao poder real; a adoração aos ídolos cegaria os homens, que só seguem a religião por ignorância e medo.
Boas leis não exigem religião; uma boa educação moral bastaria. Quanto aos costumes, postula-se que as leis devem ser suaves e considerar os diferentes caráteres. Há poucos crimes numa sociedade onde predominem a liberdade e a igualdade. Não pode ser crime a blasfêmia, pois não se ofende uma quimera.
O autor do panfleto descriminaliza a maioria das práticas interditas, e, para isso, vale-se de justificativas baseadas no modo de vida das civilizações antigas, em que as mesmas práticas eram permitidas, tal como a sodomia entre os gregos, ou nas “leis da natureza”, que, para os libertinos, apenas incitam o crime.
Diante disso, a calúnia só faria o mau se sentir culpado e o virtuoso redobrar seus cuidados. O roubo equilibra as riquezas; o homem que é roubado é quem deveria ser punido, para aprender a vigiar sua propriedade. A libertinagem – prostituição, adultério, incesto, estupro e sodomia – é um crime moral, que não importa ao regime republicano. O estado moral é de tranquilidade, enquanto o imoral é de movimento, próprio do republicano.
O pudor vai contra as leis da natureza, já que nascemos nus. Deve-se impor ordem à luxúria em vez de proibi-la, para que os homens não se revoltem. A prostituição é legítima: é egoísmo manter a mulher só para si, pois a possessão fere a liberdade individual. A mulher deve servir aos homens, que têm o direito de usar da violência para possui-la, posto que são por natureza mais fortes que elas; ao mesmo tempo, a mulher também pode satisfazer seus próprios desejos. A família é uma instituição que encarcera: todos são filhos da pátria.
Os laços do matrimônio também são absurdos, pois exigem uma exclusividade sacrificante. O estupro só antecipa as consequências de uma união matrimonial. O assassinato faz apenas variar as formas da natureza, posto que tudo se transforma, se recria, na vida e na morte. Na guerra, o assassinato já é justificável, então por que não pode ser em outros contextos, a fim de garantir o controle populacional? Se o assassinato não é um crime, não se deve puni-lo – e, se é um crime, por que puni-lo com outro, por meio da pena de morte? A proposição final é que se elaborem poucas e boas leis, voltadas à tranquilidade do cidadão e à permanência da república.
“Sociedade dos amigos do crime”
Finalmente, em “Sociedade dos amigos do crime”, também extraído de A história de Juliette, são expostos os mandamentos da chamada Sociedade dos amigos do crime. Segundo os preceitos da sociedade, os homens não são livres, e sim escravos das leis da natureza, portanto segui-las é totalmente legitimado, sem nenhum remorso. A denominação “crime” é apenas convencional; não se julgam criminosas as ações cometidas pelas paixões que a natureza inspira.
A sociedade protege todos os seus membros das imposições da lei dos homens, pois acredita apenas nas leis da natureza; não faz distinção entre os membros, exige que os membros renunciem a qualquer religião ou crença; não admite nenhum deus além do prazer, pelo qual sacrifica tudo; rompe e confunde todas as ligações familiares, obrigando os membros a apresentarem seus cônjuges e parentes mais próximos; é preciso ter pelo menos vinte e cinco mil libras de renda para se tornar membro, pois é preciso suprir as despesas da casa; artistas ou homens de letras são recebidos por mil libras por ano; os membros dividem entre si todas as penas e prazeres e ajudam-se mutuamente; esmolas e caridades são atos proibidos; há reservas de dinheiro para quem necessitar; o presidente é eleito por votação secreta e fica apenas um mês no cargo, sendo sua função fazer respeitar as leis da sociedade; nos momentos de prazer, os membros devem se sujeitar aos desejos dos outros, de forma revezada; entre os irmãos, as paixões cruéis não são aceitas, existem haréns reservados para isso; todos os excessos à mesa são autorizados e estimulados; todos os membros devem confessar seus atos, sendo louvados e recompensados pelos que a sociedade julga criminosos; não são aceitos homens acima de quarenta anos e mulheres acima de trinta e cinco, a não ser que envelheçam na sociedade; todo membro que não aparecer na sociedade durante um ano é expulso; as crianças nascidas na sociedade são educadas para se tornarem membros a partir dos dez anos, para os meninos, e dos sete, para as meninas; o número de membros não pode exceder quatrocentos; as enfermidades não são toleradas; não são aceitos estrangeiros; quem revelar os segredos da sociedade é condenado à pena de morte; os discursos políticos são proibidos; é preciso prestar um juramento para se tornar membro.
Sade: um Provocador
Podemos perceber, por meio do conteúdo dos textos selecionados, como Marquês de Sade é racional, o que condiz ao espírito iluminista de sua época, e como ele eleva essa racionalidade iluminista à última potência, criando, sistematicamente, um universo de liberdade absoluta onde a perversidade impera. Sem a crença na magnitude de Deus, sua infinita bondade, e o temor dos castigos infernais, é possível aceitar qualquer prática como justa, contanto que esta seja prazerosa para quem a comete. Tudo é válido em nome do prazer e justificável pelas leis da natureza, notadamente uma natureza cruel e despótica, em que o mais forte prevalece sobre o mais fraco e todos devem se submeter a suas vontades e a dos mais poderosos.
Enfim, não se deve esquecer que Sade é, acima de tudo, um grande provocador, um rebelde, cujos escritos podem indignar ou inspirar o leitor, sem jamais deixá-lo indiferente.
Referência:
SADE, Marquês de. Diálogo entre um padre e um moribundo e outras diatribes e blasfêmias. Iluminuras: Rio de Janeiro, 2001.
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