Borges, a excelência da escrita quase pintura, do deleite de saber reler, oxigenando corações e mentes, pintando o sete, com aquela cara de arlequim lambido e as pencas de prosas e criticas.
Gênio? Louco? Freudiano. Lendas correm sobre ele, viçam. Sobre o que ele não disse e também o que poderia dizer. Textos e contações e prosopopéias. Ou o que ele quis dizer quando se calou. Esse é o bolero-blues de Borges. De uma louca lucidez limpa, com uma literatura espetacular, ele fazia a poesia desmiolada (cabide de pregos), o conto-ensaio (ficções), a palavra ao pé da letra.
Já imaginou?
Jorge Luis Borges, britânico-latino, mito e satisfação de lê-lo, sabê-lo, colhê-lo – alguém aí disse entender no primeiro arrazoado? Nem pensar. Ele escrevia sobre o que o leitor tinha que pintar a reflexão pro entendimento acima da lei. Ferino, lírico, real-surreal, novidadeiro, cheio de panca – com elegância – e alto domínio de línguas e letras e variações em torno do mesmo estilo de lambanças e releituras: ele de si.
Borges, a excelência da escrita quase pintura, do deleite de saber reler, oxigenando corações e mentes, pintando o sete, com aquela cara de arlequim lambido e as pencas de prosas e criticas. Visionário, sem dúvida. Inesgotável. E questionava a crítica que não o sabia compreender inteiro e completo. Quem o traduziria para o entendimento linear de seu tempo atribulado?
Quem foi o latino-europeu Borges? Acusado e elogiado. A estética perene da inteligência sentenciada em seu fazer silos de palavras. Milongueiro no self de si. Sendero (senda espinhosa) que foi personagem de si mesmo. Entrevistas, cartas, registros, rascunhos. Pistas falsas, fabricadas (a propósito dele) ou jogo marcado, jogo de cena?. Jogo de xadrez labiríntico pintou-se espelho. O inverossímil enlivrado. A alucinação criativa como um redemoinho furta-cor de tantas coisas que fez, que foi, que burilou, que até inventou de inventar, multidimensional, polivalente, eclético como um desbunde.
Um dos maiores e melhores escritores da nossa paradoxal sulamérica de ibéricas utópicas. O deleite de escrever-se – destilar-se – ver-ter-se; meio quasímodo-organdi a ver o invisível, narrar o indizível, biblioteca sagracial na alma; um quase coiso muito além de humanus, num circus de humanus. Ainda assim pleno e táctil.
Os livros dele. A alma-livro dele virou livro livre. Todas as páginas são Borges. Celeumas, paradigmas, retratações, prós e contras, e lá está Borges numa esquina de um café de Buenos Aires, muito além de las locas de maio, sonhando a redenção de si pela obra inquestionável, pelo que criou irreverente, nobre e assim mesmo pegajoso, fora do comum, fora de série. Clássico latino.
Escrevia para ser entendido por quem era do ramo, do oficio, do baú das letras. Polemizar era sua praia porque era sua cara-coragem como conseqüência da bagagem atônita de si. Refratário quando sabia se defender sentindo o in-provável. Figurinha carimbada.
Temos que rever Borges, sonhar Borges – pesadelar Borges – ilhá-lo num tempo de só relê-lo inteiro e completo (se isso for possível numa só vida), revendo o tácito, o implícito, o desdizer, as entrelinhas, misturando sua vida, seus miolos, e o macadame-obra-prima que é todo ele pelo lastro que deixou, universalizando sua inenarrável dor.
Dor de existir? Dor de saber antes? De pensar o sem símbolo qualificável como se dessa dimensão?
Desculpe, cara pálida, Borges é para poucos. Borges não é para qualquer um. Ele adora andar na contracorrente dos rios narrativos, habitar os pântanos das margens plácidas de seus criames, tem que ter, ponhamos, cabeça aberta, olhos vivíssimos, cultura vívida, lastro largo, sensibilidade louca, sensorialidade hangar, paciência-zen; pescar as pistas, rever, reler, ir e voltar, anotar, registrar, pensar sobre o ver, pensar sobre o ler, ir pensando-repensando enquanto o lê como um radar-asa-de-abutre para sacá-lo inteiro e pleno e total. Mas não é fácil. As vezes Jorge Luis Borges é isso mesmo, um pé no sacro. Cadê você?
Jorge Luis Borges não veio para explicar-(se).
Veio para confundir ainda mais a babel literária, pondo fogo na canjica dessa mixórdia que é pensar a escrita voraz, altaneira, dando mais lodo à contradição humana por excelência, varando modelos e etiquetas, às vezes se misturando aqui e ali – se sujando de ser menos personagem e mais humanus? – dando pano pra manga, mas sempre ele mesmo no contraditório difícil jogo de sobreviver enquanto lúcido e sofredor disso e por isso mesmo marcado pelos deuses, como um estigma que comportou só na literatura, não na sua vida-livro.
Deus enlouquece seus escolhidos?
Ser escritor foi sua purgação, libertação ou condenação? Talvez até anunciação. Periga ser.
Tudo a ler?
Borges vive!
Ai de ti Planeta Húmus!
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