O chamado de Lovecraft

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Desconhecido em vida, Lovecraft se tornou conhecido graças aos amigos que publicaram sua obra

header_HP-Lovecraft-by-Lee-MoyerNotei, um dia desses, que tanto o primeiro, quanto o último livro que comprei para ler em 2015 foram do H. P. Lovecraft. O primeiro, O chamado de Cthulhu e outros contos, da Hedra, com tradução do Guilherme da Silva Braga e o segundo Nas montanhas da loucura e outras histórias de terror, da L&PM, com tradução de Marcio de Paula Stockler Hack. É uma espécie de chamado do Lovecraft, chamado que atendo sempre. Todavia, nunca tinha parado para falar sobre esse gigante do horror, como, finalmente, vou fazer agora – com prazer!

Não é de hoje que o mestre da literatura de horror me encanta. O assombro despertado nas leituras de Lovecraft sempre me pareceu evocar as noites mais chuvosas da infância, onde minhas irmãs, tia e primos se sentavam comigo no chão frio, sob a luz insistente dos relâmpagos, para contar histórias escabrosas sobre o princípio de tudo e, pior: sobre o fim. Além dessa evocação extremamente pessoal, há outro aspecto da literatura do gênio de Providence que me desperta o maior interesse possível: a reflexão sobre a escrita e o modo em banho Maria como atormenta o leitor, deixando-nos sem o último fôlego antes do ponto final.

Esse último aspecto parece proposital na prosa de Lovecraft, notadamente porque ele, enquanto escritor, tinha plena consciência de que a literatura de horror, enquanto segmento da literatura fantástica como um todo, era um catalisador para o não real, para a liquidificação das bases mais sólidas do mundo como o vemos, e após a liquidificação do real nos veríamos em tal confusão de sentidos e razão que só nos restaria o medo (2012, 145):

Esses contos muitas vezes enfatizam o elemento de horror porque o medo é nossa emoção mais profunda e mais intensa, e também a que mais se presta à criação de ilusões que desafiam a Natureza. O horror e o desconhecido, ou o estranho, mantêm sempre uma relação muito estreita, de modo que é difícil pintar um retrato convincente do esfacelamento das leis naturais ou da estranheza ou singularidade cósmica sem destacar a emoção do medo.

Note-se: o medo para H. P. Lovecraft não é o produto de sua prosa, mas o produto mais arqueano da mente humana. Seu papel enquanto escritor é aquele velho papel que o Mario Quintana vivia reiterando em sua poética: colocar pra fora o que já estava dentro, como numa maiêutica socrática.

Quanto ao estilo lovecraftiano e sua forma de nos fazer agonizar na leitura, de nos pôr em banho Maria até ficarmos completamente sem fôlego, desorientados, ensandecidos por um ponto final, é uma característica de perfeito novelista e contista que o Lovecraft foi. Vamos citar um trecho do Nas montanhas da loucura, só pra você sentir o suspense (2015, 154):

É melhor ter a sinceridade – ainda que eu não possa suportar ser inteiramente direto – de declarar o que vimos; embora à época tenhamos sentido que aquilo não deveria ser confessado sequer de um para o outro. As palavras que chegam ao leitor nunca poderão nem mesmo sugerir o horror absoluto do que vimos. Aquilo aleijou nossas consciências de modo tão completo que me espanto de ter-nos restado a sensatez residual de enfraquecer a luz das lanternas como planejado e tomar o túnel correto em direção à cidade morta. O puro instinto deve nos ter guiado.

Quem não tiver um coração forte enfartará antes de Lovecraft dizer, finalmente, o que os ensandecidos cientistas-personagens viram! Esse suspense engendrado dentro de parágrafos enormes e que causam vertigens no leitor é um estilo próprio do gênio de Providence, demonstrando a frieza de seu trabalho literário quase psicótico. Aliás, o pai das personagens mais psicóticas da literatura de horror contemporânea, o Stephen King, já confessou acerca de Lovecraft: “Não há dúvidas de que H.P. Lovecraft ainda é o maior contista de horror clássico do século XX a ser superado”. Não sei se conseguirão superá-lo, caro King.

E aproveitando o gancho do King, diferentemente dele, Lovecraft não fez o menor sucesso em vida. Foi o verdadeiro Vincent van Gogh das letras, não tendo vendido um livro sequer. Divulgou sua literatura por meio de publicações em periódicos e revistas que eram lidos por um público restrito. E, de fato, Lovecraft foi restrito enquanto viveu, só se tornando mais conhecido do público após a sua morte em 1937, e com a criação, por seus amigos, da editora Arkham House para publicar os seus trabalhos.

Fã inveterado de Edgar Allan Poe e da literatura fantástica orientalista, notadamente da árabe, Lovecraft escrevia sua arte, enquanto fazia revisões de livros horrorosos da literatura de mercado, que seriam lidos por centenas de milhares, como ele mesmo declarara, em carta a R. Michael (2012, 140):

Minha principal ocupação remunerada é a revisão profissional de prosa e verso para outros escritores – uma tarefa odiosa, porém, mais garantida do que os riscos da escrita original para os que não produzem obras populares e comerciais. Escrevo meus próprios contos quando tenho oportunidade, o que não ocorre com a frequência que eu gostaria.

Para nossa completa sorte, os amigos do Lovecraft eram realmente amigos, tal como um Max Brod, em se tratando de Kafka, e perpetuaram a literatura do gênio de Providence. Hoje, temos comunidades estupendas de debate da obra do pai de Cthulhu no Facebook/Brasil, como a “O mundo de Lovecraft, King, Poe, etc.” e tantas outras. Sem falar nas aparições dos terríveis monstros lovecraftianos nos mais diversos desenhos animados, como na famosa abertura de Os Simpsons, ou como na invasão de Cthulhu em South Park.

R’lyeh e Kadath, as cidades assombrosas que abrigam as monstruosidades cósmicas que um dia aportaram no Planeta Terra e, após reviravoltas imensas do planeta, mantiveram-se submersas nos mais profundos abismos marítimos ou polares, começam a figurar, inclusive, em games, como se pode ver do trailer de At the montains of madness da dupla de espanhóis Team Clockworks que, assim como no conto de Lovecraft, retrata uma malfadada expedição à Antártica que termina em mortes, destruições e na revelação da sobrevivência dos Anciões e Shoggoths pelos séculos dos séculos.

Como se vê, H.P. Lovecraft, embora completamente desconhecido em sua época, sobreviveu e tem aterrorizado, com sua literatura foda, milhares de mentes curiosas e inventivas como as nossas, mentes que, em detrimento de um mercado cada vez mais irritante, que divulga apenas uma literatura cada vez mais comercial, continuam dando valor supremo à escrita artística. Falando nisso, a mente de Lovecraft, era do mesmo tipo: “Escrevo apenas quando o clamor íntimo pela expressão torna-se irresistível. Nada me inspira maior desprezo do que a escrita forçada ou mecânica ou comercial”. (2012, 144).

E você, tem atendido ao chamado de H.P. Lovecraft?

 

Referências:

LOVECRAFT, H.P. O chamado de Cthulhu e outros contos. São Paulo: Hedra, 2012.

__________________Nas montanhas da loucura e outras histórias de terror. Porto Alegre: L&PM, 2015.

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