O Cientificismo em “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo

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Quando compreendemos a definição de Cientificismo e Naturalismo, conseguimos compreender melhor a genialidade de O Cortiço, escrito por Aluísio de Azevedo.

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Cortiço, Rio de Janeiro

 Contexto histórico da obra

O século XIX foi marcado por grande desenvolvimento científico, influenciado diretamente pela Revolução Industrial. No Brasil, especialmente na cidade de Rio de Janeiro, acontecimentos ligados à ciência e à medicina começam “a consolidar entre os homens de ciência luso-americanos a certeza de que era possível produzir conhecimento numa nação situada nos trópicos.” [1] Tais acontecimentos são, majoritariamente, a instalação de várias instituições científicas, a citar: “O Colégio Médico da Bahia, em 1808, mesmo ano da instalação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; Em 1810, a Academia Militar do Rio de Janeiro, que durante o século XIX daria origem, em 1855, à Escola Central e, em 1874, à Escola Politécnica; e o Museu Nacional de História Natural, em 1818.” [2]

Marcado pela influência das ideias iluministas, o período — especificamente o fim do século XVIII — teve por parte de Portugal um interesse científico em relação à sua colônia americana, com a realização de levantamentos dos recursos naturais do Brasil e a criação de jardins botânicos, como o já citado carioca, a fim de estimular a produção agrícola. [3]

Outro marco importante é a chegada da Impressa Régia, em 1808, ao Brasil, responsável esta pelas primeiras publicações no Rio e na Bahia. Tal acontecimento fez com que, aos poucos, fosse criado um espaço na sociedade brasileira letrada para a disseminação de ideias e opiniões e para a propagação do interesse e do pensar científico. [4]

O Cientificismo

O Cientificismo (ou Cientismo) é um termo complexo. De acordo com a mais recente definição do dicionário Aurélio, o Cientificismo é a “doutrina filosófica que considera definitivos os conhecimentos científicos. / Filosofia que nega a importância dos problemas que estão fora do alcance da investigação científica.” Outra definição seria, de acordo com o mesmo dicionário, a “confiança na capacidade ilimitada de as ciências resolverem todas as questões e problemas que se põem ao homem.”

Em relação à Literatura, o Cientificismo seria a prática de obter conclusões acerca do indivíduo ou da sociedade com base em uma “ideologia científica.” Uma busca pela observação absoluta e imparcial do ser humano, com tendências a enxergá-lo como um animal e priorizar seus aspectos instintivos e sexuais, ainda que se admita ter capacidades e habilidades que o distingue dos animais em si, como o raciocínio.

O Cientificismo em “O Cortiço

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Aluísio de Azevedo, autor da obra.

Influenciados pela disseminação científica da época, os escritores do Naturalismo adotavam o Cientificismo como forma a rejeitar as idealizações e subjetividades da escola literária anterior, o Romantismo. Mais radicais do que os adeptos ao Realismo, que tendiam a escrever de forma a obter uma observação real do individuo e da sociedade, os Naturalistas não se limitavam a isso. A fim de dar ao romance uma característica de experimento científico — ou, como o escritor francês Émile Zola chamava, “documento humano” — os escritores naturalistas abordavam o ser humano como animal e tinham interesse em retratar o ambiente ao seu redor tão objetivamente quanto uma fotografia (o ideal em termos de “reprodução imparcial”).

Daí vem a propensão de Aluísio, como escritor naturalista, ao “pessimismo” na maneira como retrata as pessoas, suas atividades, suas relações e seu entorno. Muitas vezes ele se detém em aspectos grotescos como feridas, excrementos e doenças. Os defeitos físicos são apresentados animalescamente e com exagero, e os mentais, como inerentes á natureza humana. Os seres humanos são tomados como objetos de estudo, e conclusões são tiradas quando expostos a certos tipos de situações e pressões sociais.  A subjetividade e a tendência ao eufemismo do período anterior são diretamente rejeitadas. “Ao contrário da concepção de Rousseau, segundo a qual o homem é naturalmente bom, os naturalistas o viam, já por natureza, roído por defeitos, por moléstias psíquicas e físicas.” [5]

O Cortiço, de Aluísio Azevedo, é tomado como o melhor exemplo de romance naturalista com influências cientificistas da Literatura Brasileira. Foi escrito de maneira a ser um recorte sociológico das camadas mais baixas do Rio de Janeiro do séc. 19, e apresenta forte crítica social ao retratar de maneira Naturalista um cortiço.  A influência científica apresenta-se até mesmo no período em que Aluísio pesquisou cortiços do Rio a fim de retratá-los da forma mais fiel e objetiva possível, observando de perto os costumes, os hábitos e a convivência entre os moradores de cortiços, sua oralidade e o modo como se organizavam socialmente, fortemente inspirado por Zola.

Características sensoriais como as imagens olfativas e visuais de O Cortiço são fortes e presentes, de modo a inserir o leitor dentro do texto. Tais elementos sensoriais talvez possam até mesmo ser interpretados como parte das “evidências” do experimento científico que o romance se propõe a ser, quase como se o autor quisesse afirmar ao seu leitor: “eu não minto quanto ao que concluo. Sinta-o por si mesmo, leitor.”

Por fim, um trecho exemplificativo:

Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.

Com isso, percebemos que, tanto o cortiço quanto seus moradores são tomados como objeto de estudo, e suas ações e características, representadas animalescamente, com forte carga visual.

 ***

*Este texto se propõe a falar especificamente sobre a influência cientificista na obra de Aluísio Azevedo, “O Cortiço”.  Para uma análise da obra para vestibular, leia este post aqui da série para vestibulares do Homo Literatus.

[1] Jornal da Ciência

[2] Ciência e Cultura – As ciências na história brasileira

[3] Ciência e Cultura – As ciências na história brasileira

[4] Jornal da Ciência

[5] Trecho extraído do resumo de “O Cortiço”, pelo Centro Educacional Objetivo.

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