Quantos caminhos uma escritora percorre para moldar sua voz?

Quantos caminhos uma escritora percorre enquanto molda sua voz literária? No caso da carioca Ana Teresa Jardim temos quatro rotas diretas em livros analisados nesta matéria, com bifurcações às vezes descobertas por seus personagens – e por nós.
“Mas na minha percepção as épocas sempre trazem rastros indeléveis das anteriores”. Assim declara o personagem que inicia A Cidade em Fuga, primeiro livro de Ana Teresa Jardim, publicado originalmente em 1997. Podemos adaptar um pouco essa frase, como ‘as pessoas sempre trazem rastros inevitáveis das outras’, e encontrar um sentido que acompanha sua origem e conta um pouco dos personagens que andam por aí a buscar seu canto no mundo.
Pelo menos no que eles entendem por mundo – vamos a Ipanema, cenário de uma das novelas de A Cidade, na metade da década de 1950; talvez inconsciente, ela pega carona na reconstrução do mundo pós-guerra, mas não tanto a maneira de outros países e sim por tímidos passos seus, feito um tempero de jazz no samba e na bossa até as influências de um no outro se consolidarem tanto e poucos saberem quem chegou primeiro.
O bairro e principalmente seus moradores são levados nesse ritmo, onde suas vidas se cruzam como notas dissonantes e vale qualquer assobio para sair do compasso tocado, mesmo sem imaginar se isso resultará em uma canção ou só em nota relegada ao lado-b de um compacto. Aquela nota lá longe é tentadora, e um dos personagens das novelas desse livro diz que seu desafio é cuidar da família em vez de tocar sua missão iluminada.
No fio da Noite, de 2001, é uma narrativa bem diferente. Ambientada no Rio de Janeiro dos anos 1920, a busca não é por entendimento de mudança de épocas. Se fosse isso a protagonista Nena estaria muito tranquila. Assassinam uma colega sua próximo ao local onde trabalha, e sobra para Nena investigar o que aconteceu.
Deveria ser função de outras pessoas, ainda mais porque ela descobre que gente de cargo importante às vezes se envolve em atividades suspeitas. Nena ainda é obrigada a explicar para falsos desatentos que não é detetive e sim uma puta. É quase como se no fundo ela intuísse não poder confiar nas pessoas devido a camuflagem, andando com malandros, marginais e gente sem pudor de meter uma bala em alguém por um avanço nos negócios. Principalmente quando Nena descobre o tamanho real da operação em que se meteu e como isso pesou no seu ofício e de suas colegas.
Diários, ensaios de gravações, viagens, saídas para degustar aquele vinho especial, casos… Uma série de cotidianos está disposta n’ A Mesa Branca, de 2002. Ingredientes de vidas por construir e cientes disso, em situações onde não fica claro o limite (existe?) entre a saudade e o apego ao que deixou de existir. Remete à primeira publicação da escritora pela semelhança na sensação dos personagens, tão perdidos lá quanto nesta obra, e também em outros contextos e abordagens. A exemplo do conto Inácia:
“Lembrei-me de um dia que passei um dia reformando um chapéu de lã azul. Senti por esse dia a nostalgia que se pode sentir por um lugar. Não era que eu sentisse que a casa era o meu lugar. Mas havia um modo de passar as tardes fazendo uso da escrivaninha que eu precisava retomar. Íamos envelhecendo sem que houvéssemos usufruído da impunidade selvagem da juventude. E isso eu precisava remediar” (p.67)
Seu romance Tanto tempo sem te Ver, publicado pela 7 Letras em 2015, tem características dos trabalhos anteriores, como a sensação de ‘para onde vou agora’ dos personagens, parte da identidade literária de Ana Teresa Jardim. A esta característica foi adicionado mais espaço para os personagens, a exemplo de Silvia, sempre na borda entre alegrias e mal-entendidos do momento atual e saudade de datas muito especiais do seu passado; não que o presente seja de todo ruim, pois há nele coisas que Silvia realmente gosta, apenas falta uma música mais animada e sincera para todos os dias.
E também Alice, sempre acostumada com a vida que levava e de repente descobre ter de lidar com a solidão, uma visita que se revela presença constante na sua ‘nova’ rotina. Parte desse sentimento veio das opções calculadas dela, após anos em um trabalho onde o silêncio era também uma ferramenta para cuidar dos outros; mas lidar com ele e com a recém descoberta solidão podia ser demais para Alice. Mas nada é demais para nós que lemos essas ficções, acompanhando o ritmo duvidoso de seus personagens e percebendo que eles às vezes estão menos desencontrados do que se julgam, mesmo sem perceber.