Guerra dos Tronos vai muito além das intrigas pelo poder, passando pelas relações e conflitos entre pais e filhos.

A saga Guerra dos Tronos, escrita por George R. R. Martin, é marcada por numerosas intrigas. As motivações são diversas: confrontos entre Casas rivais, anseios por poder etc. Na maioria das vezes, o inimigo é externo, um estrangeiro indigno de piedade. Porém, há conflitos desencadeados no próprio seio familiar, estes tendem a ser causados pelo desacordo entre a expectativa paterna em relação a seus descendentes e a realidade que os envolve.
Embora a percepção acerca dos filhos tenha sofrido drásticas alterações com o passar do tempo, a maneira como estes são percebidos na trama de Martin revela bastante fidelidade à concepção medieval. Como a descreve Zygmunt Bauman:
“Houve uma época (das fortunas de família passadas de geração para geração, segundo a árvore genealógica, e da posição social hereditária) em que os filhos eram pontes entre a mortalidade e a imortalidade, entre uma vida individual abominavelmente curta e a infinita (esperava-se) duração da família. Morrer sem filhos significava nunca ter construído uma ponte como essa. A morte de um homem sem filhos (embora o mesmo não ocorresse, necessariamente, com a de uma mulher sem filhos, a menos que se tratasse de uma rainha ou algo semelhante) significava a morte da família — negligenciar o mais importante dos deveres, descumprir a mais imperativa das tarefas.”
Filhos têm valor simbólico e um grande fardo diante de si: perpetuar o nome da família e mantê-lo a salvo da desonra.
No entanto, quando a prole se desvia do caminho traçado de antemão pelos pais, a imagem familiar se vê ameaçada. Tyrion Lannister esmagou os anseios nele depositados já no instante de seu nascimento. Sua vinda ao mundo ocorreu às custas daquela que lhe ocasionou a existência: sua mãe morreu no parto, e ao recém-nascido foi atribuída a culpa pelo seu falecimento.
Além da injusta responsabilidade pela tragédia acontecida em seu primeiro dia de vida, a aparência de Tyrion em nada o favorece em termos de boa aceitação: “Era um anão, com metade da altura do irmão […] A cabeça era grande demais para o corpo, com um rosto animalesco […] Um olho verde e um negro espreitavam sob uma cascata de cabelos escorridos”. O grotesco de suas feições se realça pelo contraste com a beleza de seu irmão mais velho, Jaime. A diferença entre os dois não se reduz, contudo, aos traços físicos. O Lannister de mais idade é galante e uma sumidade na arte da espada, despertando o orgulho de seu pai. Ao passo que Tyrion viu-se impossibilitado por sua estatura de obter qualquer triunfo como guerreiro, portanto necessitou destacar-se de outra maneira:
“Meus braços são suficientemente fortes, mas, uma vez mais, curtos demais. Nunca serei um espadachim. Se tivesse nascido camponês, provavelmente me teriam abandonado para que morresse, ou vendido para a coleção de aberrações de algum negociante de escravos. Mas, ai de mim! Nasci um Lannister de Rochedo Casterly, onde as coleções de aberrações são das mais pobres. Esperam-se coisas de mim. Meu pai foi Mão do Rei durante vinte anos […] Bem, poderei ter as pernas pequenas demais para o corpo, mas minha cabeça é grande demais, embora eu prefira pensar que tem o tamanho certo para a minha mente. Possuo um entendimento realista das minhas forças e fraquezas. A mente é a minha arma. Meu irmão tem a sua espada, o Rei Robert, o seu martelo de guerra, e eu tenho a mente.”
Apesar de ter muitos traços verticais em comum com seu progenitor, o filho mais novo de Tywin Lannister possui uma identidade horizontal repudiante aos olhos de seu pai: o nanismo. No livro Longe da árvore, Andrew Solomon define identidade vertical como características determinantes de personalidade compartilhadas entre pais e filhos, sua origem pode ser tanto genética quanto cultural. Geralmente, a etnia, a linguagem e a nacionalidade são exemplos de identidade vertical, pois influenciam, em certo grau, o comportamento da pessoa que as têm e foram transmitidas pelos pais a seus descendentes. Identidades horizontais, por sua vez, são formadas por características inatas ou adquiridas não compartilhadas com os progenitores. Exemplificando, pessoas gays comumente possuem pais heterossexuais, portanto eis um traço de seu ser não partilhado por seus genitores.
O título do livro de Andrew Solomon faz referência e ao mesmo tempo questiona o ditado que afirma que um fruto jamais cai longe da árvore; um filho sempre puxa aos pais. No caso de Tyrion, fica evidente a fragilidade de tal adágio popular. Seu nanismo representa uma identidade horizontal geneticamente adquirida. Sua baixa estatura influencia seu comportamento, como já vimos anteriormente, pois foi uma forte motivação em sua escolha de enveredar pelo caminho dos livros e não pelo das armas. Porém, como afirma Solomon: “Famílias tendem a reforçar as identidades verticais desde a primeira infância, mas muitas se opõem às horizontais. As identidades verticais em geral são respeitadas como identidade; as horizontais são muitas vezes tratadas como defeitos.”. O pai de Tyrion não difere da maioria e percebe o nanismo do filho como um estigma, um borrão na cintilante escrita Lannister ao longo da história.
Em épocas passadas, o nanismo era percebido como uma aberração e, mesmo hoje, muitos ainda o tratam como tal. Andrew Solomon conta que: “Quando eu descrevia as outras categorias incluídas neste livro [autismo, surdez, síndrome de down, entre outras], meus ouvintes eram silenciados pela seriedade do empreendimento; ao mencionar os anões, os amigos caíam na gargalhada”. Além disso, acrescenta:
“Uma mulher normal que se casa com um cego inspira admiração; uma mulher de estatura comum que se casa com um anão inspira a suspeita de que tem um fetiche. Anões ainda aparecem em shows de aberrações, em competições de arremesso de anão e na pornografia, onde todo um subgênero que apresenta anões explora um voyeurismo coisificador. Isso dá provas de uma insensibilidade que vai além da exibida em relação a quase qualquer outro grupo deficiente.”
Embora se passe em um cenário medieval, a obra de George R. R. Martin é caracterizada por um olhar contemporâneo, evidenciado na constituição de seus personagens. A título de exemplo, temos Arya, uma menina que se recusa a desempenhar os papéis de gênero a ela impostos, possuindo maior afinidade com a espada do que com a costura, assim como Khaleesi, uma mulher à frente de um exército, o qual a respeita e venera, algo quase inimaginável em outras épocas. Tyrion é igualmente um personagem complexo e engenhoso. Seu nanismo se faz presente em todos os momentos – pois não pode apartar-se dele – , mas nem por isso o reduz a um ser patético e estereotipado. Ele próprio questiona a imagem convencional do anão em um diálogo com Jon Snow:
“– E você é o bastardo de Ned Stark, não é? Jon sentiu-se atravessado por uma sensação de frio. Apertou os lábios e não disse nada. – Eu o ofendi? – disse Lannister. – Perdão. Os anões não têm de ter tato. Gerações de bobos variegados conquistaram para mim o direito de me vestir mal e de dizer qualquer maldita coisa que me venha à cabeça – ele sorriu. – Mas você é o bastardo.”
Peter Dinklage, ator responsável por atuar como Tyrion na consagrada série da HBO, afirma acerca de seu personagem: “Eu gosto desse papel, tanto pela qualidade da trama quanto pelo fato de ele explodir totalmente o estereótipo do anão”. De fato, Tyrion rompe com as representações convencionais, porque é um personagem dotado de rara astúcia, de uma bússola moral mais precisa do que a maioria, além de possuir uma vida boêmia: bebe e transa frequentemente. É um anão que nos faz rir, porém o riso não parte de traços inerentes à sua condição física, tampouco de humilhações que lhe são impostas. A graça se origina da sagacidade de seus gracejos e da mordacidade de suas opiniões.
Apesar de sua personalidade fascinante, a aceitação paterna jamais foi alcançada pelo jovem Lannister, fazendo valer a triste constatação que encerra seu diálogo com Jon Snow: “– Lembre-se disso, rapaz. Todos os anões são bastardos”.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro:Zahar, 2012.
MARTIN, George R. R. Guerra dos tronos. São Paulo: Leya, 2012.
SOLOMON, Andrew. Longe da árvore. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.