O Coração das Trevas de Joseph Conrad e as barbaridades civilizatórias

0
O Coração das Trevas de Joseph Conrad e as barbaridades civilizatórias
Joseph Conrad

A civilização como pretexto para a barbárie imperialista em Coração das Trevas, romance mais famoso de Joseph Conrad

Conrad
Joseph Conrad

Apesar de nascido na Ucrânia e só depois de adulto ter aprendido a língua inglesa, foi nesse idioma que Joseph Conrad (1857-1942) escreveu sua literatura. Esta inclui 17 romances e sete novelas, sendo a mais famosa O Coração das Trevas (Heart of Darkness), de 1902. Antes de sua aparição em livro, a obra já havia vindo a público numa série dividida em três partes, publicada na revista Blackwood’s Magazine.

O texto traz uma narrativa dentro de outra. A bordo da escuna Nellie, a narração em primeira pessoa nos apresenta uma tripulação obrigada a aguardar a “virada das águas”, pois maré e vento desfavoráveis não permitiam seguir viagem naquele momento pelo rio Tâmisa (Inglaterra). O narrador nos apresenta a tripulação, nos descrevendo mais pormenorizadamente seu capitão: Charlie Marlow. Este, como os outros, não tem nada para fazer até o fim da maré enchente. O sol vai se pondo. O dia a perecer numa luminosidade estática, enquanto tripulantes iniciam um jogo de dominó, frouxa e preguiçosamente. O cenário alimenta divagações, e o capitão Charlie Marlow começa a discorrer sobre a origem da Inglaterra, lembrando que ela já fora um local dominado pelos romanos: uma terra selvagem. Então uma associação de ideias o leva a pensar no imperialismo britânico na África. É aí que Marlow vai começar o relato do que, mais propriamente, constitui o assunto da novela: sua antiga peregrinação num barco fluvial a vapor para encontrar o enigmático Sr. Kurtz no coração do continente africano.

Seria necessário esse prólogo, se o assunto mesmo da obra só começa aí? Para que atrasar o início do relato? Poderíamos pensar que um didatismo exacerbado levara o escritor a pormenorizar desnecessariamente o caráter do (futuro) narrador Marlow, antes de começar a real história. Seria essa introdução – portanto – um acréscimo desnecessário que atravancaria a fluidez da novela… Mas não é o caso. O primeiro narrador descreve o ambiente, a atmosfera da escuna Nellie e as características de seus tripulantes. Esse personagem que narra inicialmente é introspectivo, menos propenso a longas conversas, sendo portanto mais verossímel que pusesse a história por escrito. Se o texto começasse como obra direta de Marlow, traria uma Conradcontradição, pois este se mostra claramente como um contador de casos, de forma nenhuma como um escritor. É verdade que se poderia optar por um texto narrado em terceira pessoa, mas isso excluiria boa parte dos devaneios e considerações de Marlow, bastante interessantes. O recurso ao discurso indireto livre poderia ser usado para amenizar isso, é fato, mas recorrer demais a tal expediente costuma soar meio maçante. A solução encontrada foi muito eficiente, pois faz com que o leitor se sinta dentro da escuna, como se fosse mais um tripulante a contemplar o crepúsculo e ouvir o capitão desfiar sua história.

Sentados diante de Marlow, aguardando a mudança da maré, ficamos sabendo que, após ele ter navegado durante uns seis anos por mares da China, oceanos Pacífico e Índico, retornara a Londres para um período de descanso. Entretanto, não tardou muito a se entediar e começou a procurar uma nova empreitada. Contrariando seu espírito de autossuficiência, recorreu à ajuda de uma tia para conseguir trabalho a bordo dum vapor. Ocuparia o cargo que vagara pelo antigo comandante ter morrido numa contenda com nativos na África. As circunstâncias envolvendo a morte são tragicômicas: achando-se logrado num negócio acerca de galinhas, o comandante (um dinamarquês chamado Fresleven) começou a surrar com bengaladas o chefe da aldeia. Com uma trêmula estocada de lança, o filho do agredido transpassou facilmente o peito do “civilizado” europeu. Depois disso todo mundo saiu correndo, nativos e invasores, deixando as galinhas para trás. Após o incidente, nunca mais foram vistas. Marlow nos conta, com ironia, que certamente as aves acabaram “colhidas pela causa do progresso”.

O contraste entre os afirmados valores civilizatórios das missões europeias na África e seus reais interesses mercantis surge a todo momento na novela. Burocratas glorificam os negócios da companhia, mas – quando perguntados por que não seguem nessas missões virtuosas – afirmam que não são tão idiotas a ponto de se enfiarem pelo continente africano. E quem segue para lá costuma ficar louco ou morrer. Em prol do quê? Teoricamente, da civilização, mas, na prática, nada disso.

Em sua trajetória, Marlow depara com atrocidades e explorações sem tamanho contra a população local. Os fins justificariam tudo isso, porém o fim único vai se mostrando cada vez mais claro como simplesmente engordar as contas bancárias da Europa. No meio disso tudo, vemos a degradação moral dos europeus metidos em solo africano, cada vez mais compulsivos na exploração da área e embriagados pelo poder. Esse é o caso do misterioso Sr. Kurtz.

Kurtz chefia um posto altamente lucrativo de extração de marfim e, justamente por isso, é muito respeitado por toda a companhia. Os meios usados são justificados pelos lucros obtidos. Kurtz seduz a população local, tornando-se um líder místico, adorado como um deus. Está, de fato, louco; mas um louco lucrativo e, por isso, elogiado, estimado, tido como exemplo. Mas, paradoxalmente, é um exemplo que não pode ser mostrado por inteiro a todos, pois macularia a imagem angelical das missões supostamente humanitárias na África.

O bem surge como um disfarce do mal. A civilização, como o pretexto para a barbárie imperialista. Nas adversas situações da empreitada exploratória, a natureza humana vai se desvelando em suas perversidades e mostrando as trevas que habitam o fundo do coração humano.

Previous article 20 Obras de Terror Apocalíptico para ler antes do fim do mundo
Next article Assassinos por natureza
Autor do livro de crítica literária Malandragem, Revolta e Anarquia: João Antônio, Antônio Fraga e Lima Barreto (Editora Achiamé, 2005). Em 2011, recebeu menção honrosa no IX Concurso Municipal de Conto – Prêmio Prefeitura de Niterói com "O Anão", posteriormente publicado. Em 2013, obteve menção honrosa no 7º Prêmio UFF de Literatura, com o conto "(Des)encontro", incluído em antologia publicada pela EdUFF. Em concursos de contos do Centro Literário e Artístico da Região Oceânica de Niterói (CLARON) ganhou 1º lugar (em 2016), 2º lugar (2017) e 7º lugar (2018). No Concurso Literário Bram Stoker (contos de terror), foi contemplado com o 10º lugar em 2018.

Não há posts para exibir