O livro Teoria geral do desassossego (um ensaio de afetos), do escritor Guilherme Antunes, é de uma estranheza e, ao mesmo tempo, de uma verossimilhança, que desconcerta o leitor
O livro Teoria geral do desassossego (2016), de Antunes, é dividido em blocos: “Das palavras encantatórias”, “Do cafajeste lírico”, “Do amor”, “Das existencialidades (ou sobre culpas e estragos)”, “Das existencialidades (ou sobre alegrias e recomeços), “Dos contos e das crônicas” e “Das considerações finais”. Os próprios títulos desses blocos temáticos já põem o leitor a pensar e, por que não, a sentir. A maior parte do livro é constituído de poemas em prosa, em que a palavra é escandida com precisão, não fossem alguns erros de revisão (sobretudo regência e pontuação) que, no entanto, não chegam a incomodar nem atrapalham a leitura.
É certo que os melhores poemas, embora eu seja avessa à metalinguagem em poesia, estão no primeiro bloco. Quando digo melhores, quero significar mais bem realizados. Mas as frases de efeito e de uma lírica que se derrama está alhures.
Em “Do cafajeste lírico”, a mulher pode se sentir um pouco incomodada com a leitura. Como o próprio nome propõe, ali não cabe o politicamente correto. “Casei-me contigo quando me flagrei chamando-te poesia e musa”. (“Casei-me”) É uma citação que traz desconforto às feministas, ou pelo menos a uma parte delas, já que, nas letras pós-modernas, a palavra lírica mais contundente parece ser a das mulheres, que não se resignam a uma simples condição de “musa”. Mas isso é assunto para outra análise.
O fato é que, seguindo a leitura, temos poemas em prosa que se põem a serviço do amor e dão fala a esse sentimento. A expressão do amor sentido e pungente está em passagens como esta: “Queria sentir-me íntimo das angústias e lembrar-me com riqueza das ansiedades todas com quem convivi. Queria curtir um sossego com as minhas desesperanças. Mas não posso. O amor me convidou para sair.” (“Pressa”). É o sentimento como redenção e possibilidade, que se debate entre o estado de clausura amorosa e a vivência plena do amor. É dolorido, portanto. Ainda neste bloco, temos a seguinte enunciação em “Se queres”: “Mulher, se queres me amar peço: ama com força, com os dentes, ama com as unhas, com os olhos, o quadril, as tempestades, ama com tuas vísceras, tua ira, ama como se viesses a criar os deuses todos.”
Em “Do amor”, temos ainda: “Pois só tu sabes onde moram os meus milagres. Só tu sabes como trazer-me às borboletas. Os teus olhos tem tons de céu e isto deve ser definitivamente alguma coisa de amor” (“Café”).
“Aliás, eu sou por inteiro um improviso. Quantas mentiras não criei e não mantive vivas com a ajuda de outras tantas, a preservar precárias e moribundas felicidades? Sou uma deliciosa ilusão, mas que não convence, uma promessa mal cumprida, rascunho genial que nunca saiu do papel.” (“Pecados e parabéns”). Esse trecho, que está em ““Das existencialidades (ou sobre culpas e estragos)”, desnorteia. Todos somos procrastinadores. Todos somos essenciais e existenciais. Há ainda no bloco um excerto interessante de “Novelas e conselhos”: “Não há nada mais que me convença, e só com um tapa na cara para regressar e ancorar em mim, sentindo algum interesse ou empatia num intervalo em que pouco me importo.” Ou ainda: “Sentimos saudades de ser e pressas de existir. Colocamos vaidades e carências para conversar enquanto calamos o silêncio à força.” (“L’étranger”).
“Parabéns” abre o capítulo “Das existencialidades (ou sobre alegrias e recomeços)” com mestria. É um longo poema em prosa em que o narrador interlocutor profere uma série de cumprimentos por causa de ações que ocorrem em funções de sentimentos. Eis um deles: “Parabéns àqueles que descobriram que a tristeza pode ser uma importante lição, mas uma aula desnecessária.” Quantas vezes não nos sentimos justamente assim? E quem já proferiu semelhante convicção?
Saímos dos poemas em prosa para adentrar o universo “Dos contos e das crônicas” pelos olhos de Antunes. “Hoje, saiu para comemorar sua vida até no dia do índio, do bombeiro e do motorista de trio elétrico. Deixou de comer toda sorte de porcarias, inclusive pessoas”. É um excerto de “Paradoxo”, conto bastante convincente.
É interessante notar que o livro todo é bastante confessional, e de uma confessionalidade envolvente. Mesmo assim, existem alguns poemas em terceira pessoa, tendo um deles um eu-lírico feminino.
Lamentavelmente, Antunes enfraquece, de certa forma, sua obra com o último capítulo, com apenas dois textos: “O teu engano” e “Aviso”. Eles não têm, em “Das considerações finais”, o mesmo poder elocutório e poético de todo o restante do livro. Mas avisa, na última frase em negrito: “Voltarei a escrever somente quando me tornar devoto”.
Alguns textos de “Dos contos e das crônicas” começam com “Era um vez”, e um deles conta a história de “A menina que colecionava abraços”. Conto tocante, bonito, um verdadeiro abraço no cosmos pelo olhar e a vivência de uma criança.
Para encerrar, deixo aqui o poema “Naufragar” em sua íntegra, a melhor forma de o leitor julgar a propriedade da obra em questão:
Às vezes naufragar é mais prudente do que continuar remando. Na vida nem todas as coisas são superáveis, possíveis, continuáveis. Uma perda, um final, uma agressão, uma dor, um trauma. Nem sempre vale a pena prosseguir. Saber o momento de largar as armas, soltar a corda, declarar cansaço e desistência. Continuar no mais das vezes equivale a apostar em um jogo que inevitavelmente iremos perder: o tempo, o espaço, a coerência, o amor próprio, outras alturas. Às vezes é necessário desistir, sentir o gosto da derrota, sem pensar o que se poderia fazer mais. O problema é que pensamos. O ruim é saber o momento correto. Precisamos saber o imenso mar em que moramos e desmoronamos.