A exploração do núcleo familiar é uma constante na literatura. No século XIX, em especial, quando o texto literário passa a ganhar cada vez mais prestígio na sociedade, torna-se natural que essa própria sociedade seja retratada nas páginas lidas – seja por um viés mais romântico ou mais realista. No entanto, um retrato das famílias atuais apresentaria consideráveis diferenças com o de dois séculos atrás, já que hoje elas tendem a ser mais fragmentadas e menos numerosas. A leitura de um romance do século XIX mostra núcleos maiores, em que não só figuram o pai, a mãe e os filhos, como também pessoas não diretamente relacionadas a essa estrutura central. Esses agregados fazem parte da dinâmica familiar e assumem o papel de protagonistas em determinadas narrativas. É o caso de Mansfield Park, da inglesa Jane Austen, e de Dom Casmurro, daquele-que-dispensa-apresentações.
Mansfield Park, para os que não conhecem a obra, foi publicada em 1814 e é o terceiro romance de Jane Austen. Sua protagonista é a tímida Fanny, que nasce numa família pobre de vários irmãos e é acolhida pelo tio, o rico proprietário das terras que dão nome ao livro. A situação de Fanny é incrivelmente delicada, já que ela é levada para a família como uma espécie de “projeto de caridade”, algo de que sua tia Norris – outra agregada – faz questão de lembrá-la constantemente. Assim, fica claro que a menina, embora passe a pertencer àquele grupo, não tem o mesmo status que as filhas do casal. Fanny recebe a mesma educação privilegiada que suas primas, mas, ao se tornar adolescente, passa a atuar como uma dama de companhia da tia, e o que se espera dela em termos sociais é muito diferente do que se espera das outras duas jovens, que ocupam seu tempo frequentando bailes e fazendo visitas sociais com vistas ao casamento.
Já Capitu, todos conhecem. A bela moça dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” é uma jovem que vive em um sobrado próximo ao da casa de Bentinho no romance Dom Casmurro, um dos mais importantes da nossa literatura. Seu pai possui uma dívida de gratidão com dona Glória, a mãe do menino, por esta ter lhe incentivado a recuperação em momento de dificuldade. No entanto, a família de Capitu é de classe inferior, e por isso sua relação com a casa e sua senhora é de uma espécie de vassalagem. Muitos críticos aludem a essa diferença de classe sutilmente exposta entre as duas famílias para taxar Capitu de interesseira. Acusam-na de manipular Bentinho a fim de ganhar a afeição do menino e, de quebra, garantir sua ascensão social.
Independentemente do que cada um pensa sobre Capitu com base na tendenciosa narração de Bentinho, há alguns pequenos indícios de que a menina, de fato, procura reverter sua situação de inferioridade. O mais interessante deles é a proximidade que ela busca estabelecer com dona Glória. Sendo jovem, sua presença na casa é tolerada, e a moça se aproveita dessa brecha para se aproximar da matriarca da família. Quando Bentinho vai para o seminário, a menina passa as manhãs cosendo com a senhora, e às vezes fica para jantar. Quando doente, dona Glória exige que seja ela a sua enfermeira. Até a amarga prima Justina a moça se esforça para conquistar. Esse comportamento bajulador tem eco nas maneiras de seu pai. Na ocasião da partida de Bentinho, Pádua passa na casa para despedir-se do menino e “pedir uma lembrança” dele. A adulação presente na manobra é evidente. A passagem sugere, de forma velada (e tão machadiana!), que a filha, nesse setor, talvez esteja seguindo à risca os passos do pai.
Essa atuação ativa de Capitu contrasta com a de Fanny. A menina, oprimida por uma sensação constante de não pertencer à família em que se encontra, aceita a posição de inferioridade imposta a ela sem questionar. As duas tias não se preocupam em lhe oferecer qualquer conforto, como fogo na lareira do quarto ou um cavalo para a prática de exercícios, e Fanny jamais menciona incômodo com essas situações ou atua para revertê-las. Sua postura é passiva e, por isso, irritante para o gosto do leitor atual. O oposto de uma Elizabeth Bennet ou uma Marianne Dashwood. Não é à toa que muitos consideram essa a menos interessante das protagonistas de Austen. Fanny tem consciência de sua posição na casa, mas não utiliza esse entendimento para mudar seu destino de qualquer maneira. Mesmo a paixão que sente pelo primo é mantida em absoluto sigilo, apesar do enorme sofrimento que isso lhe traz.
O mais interessante em comparar essas duas personagens é notar como a posição da mulher, que na sociedade do século XIX já era bastante frágil, torna-se ainda mais prejudicada nesse tipo de situação de subserviência a um núcleo de melhor posição social. Há aqui a questão do pertencimento: como se sentir confortável quando o desequilíbrio é evidente? Capitu e Fanny sabem que não possuem direitos dentro das famílias em que foram inseridas, mas uma delas opta por aceitar sua situação como um suplício inquestionável, enquanto a outra decide arregaçar as mangas para virar o jogo. Qual dos dois posicionamentos é o mais correto? Ou, ainda: alguma delas pode ser culpada pelo seu curso de (in)ação ao assumirem posição tão ambígua?
Os romances mais interessantes são os que trazem ao leitor muitas camadas. Machado de Assis e Jane Austen, cada um à sua maneira, procuraram desnudar o funcionamento da sociedade em que estavam inseridos, evidenciando seus costumes e o impacto que eles tinham na vida dos sujeitos. Assim, as narrativas em questão extrapolam o título de “histórias de amor”, tornando-se textos mais complexos e representativos de um período. Sem dúvida, os dois autores merecem ser lidos e apreciados também por esta faceta.